quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sabeis o que vós quereis da orgia e do sexo?


Dizei-me!... Dizei-me meus filhos...

Pensais que não sois eternos?

Sabeis o que vós quereis da vossa existência?
Sabeis o que vós quereis de vós?
Sabeis o que vós quereis do universo?
Sabeis o que vós quereis da orgia e do sexo?
Sabeis o que vós quereis da gula?
Sabeis o que vós quereis da ambição?
Sabeis o que vós quereis dos narcóticos?
Sabeis o que vós quereis da volúpia e da traição?

Pensais que não sois eternos?

Pois então, com todo o conhecimento e sabedoria, ensinarei e mostrar-vos-ei!

Mostrar-vos-ei como usar a existência!
Mostrar-vos-ei como usar a subjugação!
Mostrar-vos-ei como usar o universo!
Mostrar-vos-ei como usar a orgia o horror e a maldição!
Mostrar-vos-ei como usar a decadência!
Mostrar-vos-ei como usar a exploração!
Mostrar-vos-ei como usar a volúpia!
Mostrar-vos-ei como usar a dependência e a tentação!

Segui-me como uma formiga.
Segui-me como um cordeiro.
Segui-me sem mostrar fadiga.
Segui-me como um escuteiro.

Não sabeis que sois eternos?
Vigiai a cultura do ócio!
Não tenteis compreender!
Apenas segui-me que...
...
...o covil do inferno está próximo!...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 29 de junho de 2010

Viens ici mon petit four...



...
Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
Põe no mesmo saco a sensatez e a loucura...
Sai para a rua e sorri aos outros porque sim...
Anda cá e expulsa as minhas trevas...
Desarruma-me a biblioteca...
E arranca-me todas as ervas...
Troca-me os caminhos...
Faz que eu já não saiba, qual a direcção da solidão...
Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
Acomoda-te no meu caos...
Aposta com os outros que vens ser feliz...
Despenteia-me a compostura...
Põe-me envergonhado por um triz...
Entra-me na alma com os pés descalços e areia...
Convence-me que sou um sortudo...
E tu és uma sereia...

Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
...

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O meu amigo Tintas... O raposo...


No outro dia, ia eu no vinte cinco, o eléctrico para os Prazeres, quando encontrei o Tintas o raposo. Já havia muito que nos não encontrávamos!...

- Então Tintas? Como estás? A Micas raposa?
- Olá Mário! Vai-se andando!
- O resto da raposada? Pergunto eu.

Enquanto nos sentávamos para que a viagem fosse um pouco mais confortável, junto a uma das janelas, passávamos ali ao "Corpo Santo", e íamos seguindo a nossa conversa...

- Olha Mário...estão bem! Eu é que tenho andado um pouco apreensivo...
- Então? Meu velho amigo canídeo!
- Eu e a minha Micas andamos um pouco "perdidos"!... Sabes os meus raposos já têm as suas idades e já seguiram à vida deles. O Mais novo arranjou uma raposita muito jeitosa e também está a organizar a vida dele... Agora ando mais a minha Micas a aprender a viver um com o outro... Os dois... Sozinhos...

Íamos passando ali pela Rua de São Paulo, na Bica, e o meu amigo Tintas fica a olhar pela janela pensativo...

- Que diabo Tintas! Estás com a Micas há tantos anos e tens de aprender a viver com ela? Agora?
- Mário! Quando me casei com a Micas, também eu saí de casa de meus pais. Agora vou-me apercebendo de que os meus pais, muitas vezes andavam à espreita de um pouco de vida, acorrendo e aturando-nos a nós e aos meus pequenos. Eles bem sabiam que eu e os meus irmãos andávamos furtivos em longas caçadas, mesmo porque essa também tinha sido a sua história. Então sempre que podiam, ou arranjavam umas lebres frescas para reunir a raposada, ou na falta de tal, chamavam os meus pequenos e os dos meus irmãos lá para a toca. Aquela balbúrdia dava-lhes cabo da cabeça, dos nervos e também de algumas carcaças de coelho, mas...também lhes devolvia uma agitação própria de grandes correrias... Por vezes, eu e a minha Micas não acedíamos com facilidade, pois sabíamos que os pequenos todos juntos são o "diabo" e que lhes davam com os focinhos nas paredes até partir. Os meus com os primos comiam este mundo e o outro, para além de chantagearem os avós com as maiores diabruras... Então fui reparando que eles, os meus pais, apesar de cansados, desejavam aquela agitação, desarrumação e balbúrdia toda, por razões especiais... Agora vejo o grande e inocente erro dos meus pais!...

A manhã estava um pouco abafada e aquele sol abrasador em "Santos" estava-me a assar os braços! Isto dantes tinha umas persianas...ia eu pensando...

- Ó Tintas! Mas que erro é que os teus pais fizeram?
- Sem qualquer noção disso, nem eu nem a Micas, depois de juntos tínhamos os nossos projectos! Certo?
- Sim! Penso que sim!
- Pois claro que sim! Uma toca em condições, umas peles para os dias frios de inverno, umas pombas e uns coelhos na dispensa, eu construía uns xilofones com os ossos das costelas dos coelhos e tinha uma banda impecável. A Micas, fazia compotas para a feira anual das melhores compotas...bem te recordas que tínhamos sempre mil coisas para fazer e, claro está, namorar...brincávamos um com o outro e fomos tendo dias felizes... Apareceram os pequenos e os dias passaram ainda a ser mais felizes. Só que, com o caminhar dos anos, os projectos da Micas e os meus foram sendo largados, com desculpas de que já não tínhamos tempo, nem paciência, nem idade e que tínhamos a raposada para olhar e criar e mais não sei o quê... Enfim... Reparei nisso, há algum tempo, antes do mais novo se "arranjar"... Ele teve fora uns dias a aprender umas novas maneiras para apanhar os "torcazes". Eu e a Micas dissemos um para o outro:
"Não temos cá o pequeno, vamos gozar umas férias catitas!..."
- Saíste-me cá um raposão!...
- Pois saí!... Fomos a uma toca de rodízio de roedores com frutas, que é um espectáculo...assim que acabamos viemos para a toca!... Começamos a ver um filme de galinhas...a meio, já estávamos fartos e chateados!...e para te ser sincero, começamos a olhar um para o outro e parece que já nem namorar sabíamos... Deixámos de saber o que fazer os dois sozinhos...esquecemos completamente como é que se vive a dois...
- Pois a raposada vai à vida e depois... Esquece-se...
- Ó Mário, mas a raposada nem nunca nos pediu, nem tem a culpa de eu e a minha Micas, termos descuidadamente transformado todos os divertimentos e ideias que tínhamos de coisas que fazíamos e outras que queríamos fazer, numa única coisa, quase obsessiva, que foi cria-los!... Vazamos as nossas cabeças de tudo o que lá tínhamos e enchemo-las exclusivamente com a ninhada e a sua criação... A ninhada depois de criada foi à vida dela e as nossas cabeças... Vácuo! Ficaram vazias! Não fizemos a gestão adequada das nossas prioridades emocionais e intelectuais... Acabámos de criar ninhada e ficámos sem nada para fazer... Pelo menos enquanto desejo e gosto. Um projecto que preencha a vida, o tempo e a vontade de amanhã ter uma serie de coisas para fazer no seguimento de um algo mais que já não seja criar a ninhada...

Já bebia um refresco. Se bem que me está a entrar aqui uma brisa vinda do Jardim da Estrela... Hum! Que fresquinho!...

- Ó Tintas, mas tu queres ser o Manuel de Oliveira...
- Não me importava, mas quero ter netos, quero brincar e divertir-me com eles, sem que eles em si sejam a minha razão de viver. Tenho de ter uma vida composta por várias causas, trabalhos e prazeres, onde a raposada esteja incluída, mas que não seja a minha bolha de ar vital. Por isso te digo, meu amigo, que realmente tenho andado um pouco apreensivo, porque me sinto quase como quando era um jovem raposito e andava aflito a tentar achar uma coisa para ser quando fosse grande...

Cá estamos. Campo de Ourique!... Tenho belas recordações deste bairro desde os tempos da tropa...

- Tintas! Queres beber uma limonada bem fresquinha debaixo daquelas sombras ali do jardim?
- Vamos a ela, caríssimo!...
...
...E sabes uma coisa? A minha Micas, já não é aquela raposa formosa que me flamejava os olhos com o seu passar, tal como eu também não, diga-se em abono da verdade... Mas...aqueles olhos e o seu focinho húmido ainda me deixam... à procura de "lebre"...


© Mário Rodrigues - 2010

A revolta de um Suatrub



Um dia, sem que muita importância tivesse o onde e o como, um Suatrub revoltou-se. Acordou quase revoltado e logo em seguida ficou uniforme e totalmente revoltado!
A revolta devia-se principalmente à fúria de não saber quem era! Não conseguia definir-se e caracterizar-se de uma forma sincera e que em simultâneo também fosse correcta e sua. Que fosse exclusiva, própria!

- Quem sou realmente?

Não conseguia responder sem hesitações e nem mesmo com elas...
Sabia de quem era filho, sabia de quem era pai, sabia de quem era cônjuge, (de uma Acetum belíssima que tinha um feitio péssimo e uma mãe...desprezível), sabia a que nome respondia quando chamado, sabia onde e o que fazia e sabia mais uma série de coisas, mas que na melhor das hipóteses lhe eram periféricas! Gravitavam em redor dele como se fossem electrões em camadas sucessivas em torno do núcleo que era ele. No entanto, nada disso era ele!

A indignação disparou, quando estando a pensar nisto, chega à conclusão que nem nos desejos e nos actos ele se conseguia identificar e rever. Respeitava regras, seguia princípios, enveredava por condutas, apoiava causas, concordava e discordava tendo em conta causas e efeitos terceiros, fazia a vontade, fazendo-a ou contrariando-a, a uma enorme quantidade de Suatrubs e Acetum, e nesta sopa gigantesca de vontades transversais, com benefícios e prejuízos para muitos e outros tantos, ele...não era nada de concreto!

O que serei realmente eu - perguntava-se a si mesmo - se o melhor que consigo é ter uma ideia de um espaço pseudo virtual onde poderá haver hipóteses de eu por ali andar!... Mas isso, por si, não me diz o que sou!... Na realidade, nem onde estou me diz!...

Esperem!... Esperem que estou a ter uma ideia!...

Aquilo que mais sinto ser é...zinco, cálcio, sódio, hidrogénio, estrôncio, lítio, ródio, oxigénio, bromo...

Finalmente!... Sinto-me um pouco mais calmo! Estou a começar a vislumbrar quem sou!...

RAIOS!!!

Tudo o que por aqui há é o mesmo que eu!!!

Se não sou nada em particular, nem mesmo o que penso, porque o que penso não sou eu mas apenas pensamentos!...
...
Só posso ser, na realidade, aquilo que não sou!


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Cardhu...bagaço...álcool etílico...perfumes... (reedição)



Hoje venho aqui reeditar um post já passado, pela única razão de que as coisas melhoraram e um desejo muito profundo de alguém, hoje tornou-se realidade...

Há trabalhos que valem muito, mas mesmo muito os sofrimentos com que nos beijam... Obrigado...

...
"Trinta e seis. Em Lourenço Marques!"
"Sim. Foi uma infância maravilhosa...tinha muitos amigos...e animais...a casa era enorme e tínhamos vários empregados...tínhamos uma divisão muito grande onde nos juntávamos todos à noite, onde havia cabeças de animais que o meu pai caçara...e um aquário...um aquário enorme onde tínhamos Tilápias e Muçambas...lindo..."
"1976. O meu pai veio mais tarde...mas veio...houve quem nunca chegasse..."
"Cedo, muito cedo. Pouco tempo depois de chegar. Os trabalhos piores eram para os "retornados". Um dia, um GNR foi lá a casa levar o recado; tinha-se soltado uma viga e que...talvez no dia seguinte pudéssemos levantar o corpo...no Chile, sim na praça do Chile"
"Não, não parei. Depois fiz mestrado e duas pós-graduações, mas..."
"Bastante bem. Escolhia-os. Nunca ia com homens...menos correctos e desalinhados. Tinham de ter, principalmente, capacidade financeira...percorri uma boa parte da Europa e estive nos melhores hotéis..."
"Um dia bateu-me à porta...outra vez! Iria ser diferente...ia deixar a mulher...mas...antes disso...o teste de gravidez deu positivo e ele...filho da puta...tinha a família dele! Disse-me! Somos sempre muito boas mas já mais se casariam connosco...Vermes!"
"Lindo, claro. Como todas as mães acham os seus bebés..."
"Não! Não nos faltava nada. Aturei clientes que...tinham dinheiro e viajavam muito em negócios e reuniões. Precisavam de uma companhia vistosa e culta para exibir aos outros palhaços nos jantares...indivíduos sexualmente desequilibrados...completamente..."
"Era um SLK. Era muito bonito e não foi completamente oferecido..."
"Não, não eram clientes. Era um grupo de amigos impecáveis...íamos vomitando os nossos fantasmas mutuamente..."
"Sim. Fui para a cama com um deles. Mero sexo animal...era uma pessoa especial...não tinha nada a ver com clientes..."
"Sim, já tínhamos bebido bastante...e uns riscos de branca..."
"Parciais! A esquerda tenho dos terços do fémur e a direita o primeiro terço da tíbia..."
"A principio, do bom e do melhor...depois Martin's, Dimple, Cardhu...bagaço...álcool etílico...perfumes..."
"Só duas vezes por semana! E com a vigilância de uma tipa sempre de olho...lutei muito para lhe dar o melhor...deitei tudo a perder..."
"A assistente social disse-me que se as coisas continuassem a melhorar, falava com o advogado para pedirem uma reapreciação...talvez me deixem voltar a ficar com ele..."
"E...posso contar com a vossa ajuda! Não posso?...pelo menos a tua?!..."

© Mário Rodrigues - 2010

1.830$00


Os "sanjo"... Pois observava-os do lado de fora dos vidros das montras e ia imaginando não só os saltos fabulosos como as velozes corridas que proporcionar-me-iam se nos meus pés estivessem... Mas na verdade nunca por cá passaram...
Não obstante o furor feminino era alcançado com os ténis da "galo"... Um dia vi uns ténis da "galo" numa montra que apesar de não serem exactamente os supremos teriam, com toda a certeza, o poder da sedução, embora menor, mas também eu próprio não era um tipo de "topo"... Tinham no entanto a virtude de serem os menos caros de todos, o que talvez me desse a possibilidade de os almejar...
À questão simples, obtiver da minha mãe uma igualmente simples resposta.

-Junta o dinheiro que logo se vê!

Bem, 1.830$00 era uma fortuna... Mas entre os 100$00 que o meu avô Francisco me dava de quando em vez e mais uns trocos daqui ou dali, mais as gorjas da minha mãe me dava por eu ir a correr serra abaixo, mais ou menos um quilometro e meio, qual "Thomas Sawyer" em busca de uns fechos, de uns botões e de umas entretelas...

Não era de um dia para o outro!
Demorava um bocado!
Demorava bastante!...
Demorou demais...

Realmente, quando cheguei a ter os ditos 1.830$00 fui, com ordens expressas e companhia, à loja...
"Não! Já não tenho nenhuns desses! Tenho ali é..."
Fui a outra loja...
"Não! Já não tenho nenhuns desses! Tenho ali é..."
Fui a outra loja...
"Não meu rapaz! A "Le Coq Sportif " já não produz esse modelo! Tenho ali é..."
...
Bem... Terei de comprar outros... Claro que muito menos fabulosos!...

"O quê? Estás mas é maluco!"

Pois sim! Os 1.830$00 acabaram no mealheiro da conta 9078-4 do MPG...


© Mário Rodrigues - 2010

Cybe ;)

Empalados em arenas.


...Segui pelo corredor até ao fim. O corredor era bastante largo e longo. No chão uma alcatifa vermelha, as paredes forradas a nogueira eram relativamente baixas. Ao longo do corredor, junto das paredes estavam figuras de dezenas de pessoas. Todas eram conhecidas. Cantores, pintores, escritores, cientistas, filósofos, etc... Como se fosse estatuas de cera... No final do corredor depois de descer dois suaves degraus encontro duas enormes portas de madeira muito clara parecia abeto ou faia...

Quando empurrei as portas vejo uma espécie de arena toda forrada de veludos e acolchoados, conferindo um ambiente de absoluto e luxuoso conforto.
Por todo o lado existiam varas de madeira com pontas afiadas espetadas no chão com os bicos para cima... Em todas elas estavam pessoas empaladas que sorriam e conversavam alegremente entre elas. Alguns discutiam negócios, taxas de juro, a beleza de senhoras ali ao lado... Tudo completamente indiferente ao insignificante facto de estarem todos empalados...
Reparei que todas as varas tinham uma inscrição, "sapere - tenere - potere"!

Havia oradores, que também empalados, diziam palavras extraordinárias de ordem, de incentivo, de glória, honra e até mesmo esperança... No entanto ninguém lhes parecia dar grande atenção com excepção dos que aguardavam que eles terminassem para eles próprios começarem as orações deles...

Bastante assustado ia passando entre eles observando aquele espectáculo dantesco. De dentro do ventre de uma mulher um feto coloca a cabeça para fora gritando muito zangado e indignado!... Morde-me voraz. Da ferida causada pelas dentadas no meu braço escorreu... Incompreensão, admiração e um pouco de escárnio...

Reparo também que ali andam alguns animais, também eles um pouco assustados. No entanto não estão empalados. Têm um comportamento normal com excepção do facto de morrerem muitos e sem razão aparente. Passado algum tempo de eu por ali andar ouço uma voz nos altifalantes que dia:

"Informamos o senhor, que terá de escolher o local onde pretende fixar a sua existência. Não poderá manter-se mais tempo a por em risco a ordem."

Estranho, vejo que já todos me olhavam identificando-me como sendo o "senhor" de que se falava no altifalante!

Reparo então, que eu próprio me encontrava trespassado por uma daquelas lanças...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 22 de junho de 2010

Num jardim de perfumes doídos...


(Ler o post anterior por favor)
...
...
Desta vez o "Musgo Real" não me conseguiu tranquilizar...
...
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Num banco de pedra, na sombra de uma Olaia... Sinto as palpebras inferiores caírem em linha recta até não sei onde... Do rosto canela da Zilda só vejo os olhos... Uma rede densa de vasos de encarnado expulsivo que rodeia as íris negras constritoradas... Observei-lhe, imóvel e atónito, minuciosamente durante uma vida...os olhos vidrados e paralisados...
Frente a frente, num silêncio absoluto e eterno de brados estridentes de dores sofridas e imaginadas... Tentei lhe calcular o sentir e a dor... Senti-me envergonhado pela tentativa... Não consegui mover uma revolta interior de ódio do homem...

Porque serei eu assim?

O homem também foi uma outra vítima... Ele arrastou a sua morte durante trinta e sete anos...
Vitima... Vitima de quê? Ou de quem?
Vitima, com certeza também foi minha!
Sou só o que faz isto e aquilo? Que gosta de carne quase crua e olha para uma articulação do joelho como se fosse tudo mecânica? Que dá as injecções a si próprio sem a menor hesitação? E que olha para o sangue que lhe sai das veias e imagina-o apressado em correrias levando essências de vida para animar outro corpo algures no mundo?
Também sou o puto que rouba nas lojas porque tem fome ou porque precisa de ser aceite no gang, que lhe também é vital como a comida! Também sou o polícia que lhe dá um tiro à queima-roupa porque na semana passada um dos seus melhores colegas lhe morreu nos braços num tiroteio de rua! Também sou o traficante que matou o polícia que estava a por em risco a sua riqueza e ambição que não é menos passível de protecção que a minha ou a do policia ou a do Sr. Machado, do Presidente, do Ministro ou do Papa!...
Compreendo que nada na vida é um acto isolado! Tudo, mas rigorosamente tudo está interligado...tragicamente interligado...

Jamais teremos capacidades para lidar com os poderes que conhecemos e desconhecemos mas que temos...

Ainda estamos à sombra da Olaia...imóveis e de olhos esbugalhados...

...Curiosamente vem-me à lembrança que as Olaias...também são conhecidas por..."Árvore de Judas"...

"...Se eu quisesse, enlouquecia..."
...sinto dificuldade em manter a postura de opção...


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sim, latas de conserva com óleo queimado dos carros


"Adeus! Até amanhã!"
"Adeus Mário..."
"O Dr. Ângelo alterou-te a medicação?"
"Não! Diz que estava tudo a ir bem e não era preciso."
...
...
"Olá! Então como vai isso?"
"Olá Mário, bom dia!"
"Dormiste bem?"
"...Sim!..."
"Que sim estranho!..."
"...Tive um pesadelo..."
"Outra vez?"
"Não!... Quer dizer sim mas este foi diferente...acabou bem!..."

"Ai foi? Queres falar disso?"
"Sim! Estava à tua espera porque queria falar-te de...umas coisas..."
"Estou a escutar!..."

"Havia latinhas..."
"Latinhas?"
"Sim, latas de conserva com óleo queimado dos carros. Punha uma em cada pé do beliche para os bichos não me subiram para a esteira. Já me bastava o cabrão de cima que berrava a noite inteira e acabava sempre a mijar-se todo e a mim que estava por baixo. Um dia fudi-lhe um dedo com um...
Numa noite...acho que era de dia mas estava tudo muito escuro e eu não conseguia ver nada. Havia umas coisas ao alto, muito grandes e finas e tinham braços. Os primeiros passos...demorei alguns segundos a dá-los porque não via o chão. Depois corri, corri e cavalguei e galopei e devorei a terra e o mato numa velocidade alucinante até bater numa parede e cair. Levantei-me palpei a parede que tinha cerca de oitenta ou noventa centímetros. Não hesitei pus-lhe a mão de cernelha e saltei-lhe por cima. Tinha muita pressa...

AHAHAHAHAHAHA !!!

Do lado de lá deveria ter uns três metros de altura e eu senti-me cair para o inferno...

Estava tudo negro! Negro muito escuro! Dentro de uma...jaula havia uma merda de uns bichos que se movimentavam muito rápido e gritaram muito... Pareciam umas coisas negras...panteras! Isso, panteras que andavam com as patas da frente no ar. Com a faca rebentei logo com uma e com um arame amarrei-a a um tronco. A outra...atei-lhe a patas da frente no alto. Ela, com as patas rasgou-me a roupa enquanto sangrava não sei porquê! Com o saibro rasguei-lhe a pele, senti-lhe o cheiro e o sabor do sangue... A outra rosnava um rosnar odioso. Implorava cânticos selvagens... A esta senti-lhe vida no ventre...
...existia outro monstro dentro dela... Caí... Vazio... Sem medo nem pavor!
Com a faca abri-lhe as entranhas, arranquei uma cria que deixei no chão a berrar para os outros comerem..."

"Porra!... Meu Deus!...
Queres contar mais?"
...
"Não!... O resto não interessa. Escuta-me outra coisa tens visto a Dra. Zilda?"
"Sim! Ainda há pouco a vi!"
"Gostava de a ver..."
"D. Maria! Pode chamar a Dra. Zilda por favor que o Sr. Machado queria falar com ela, por favor?"
"Sim Mário vou já!"
...
"Mário, ela é uma grande médica! Não é?"
" Sim! Penso que sim! E também tem um lindo rosto canela!... É uma mulher muito bela!"
...
"Olá Mário!"
"Olá Dra. Zilda! Como está?"
"Está tudo bem...vamos andando nos nossos trabalhos!..."
"Então Sr. Machado quer falar comigo?"
"Olá Dra. ...Zilda..."
...
"Sabe Dra. Zilda, contaram-me umas coisas sobre a sua terra e...outras coisas...sobre...
Sinto uma labareda caustica que me corrói e abre buracos por onde não sai nada...só jorra medo e dor...
Perdão! Não vale a pena! Mesmo que o obtivesse de si, de Deus e até do inferno... Nunca o obteria de mim... A sua mãe...era...linda!...nunca pagarei o que fiz..."

Atónitos assistimos a um movimento brusco e calculado há muito, decepou com um pedaço de vidro a carótida interna...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Prelúdio de uma inexistência anunciada...




Assim haja Deus... Na verdade o paraíso existe!...

São sete horas e vinte e três minutos da manhã neste preciso momento. Esta brisa, que deve ter aproximadamente vinte e muitos graus célsius, dada a sensação de conforto que me transmite, passa-me pelo rosto e entra-me por entre os botões da camisa "cru", de linho fresco, já entreabertos, transmitindo-me um bem-estar e uma calma que nunca experimentei!...

Recostado na cadeira de lona e madeira, com o oceano quente que me banha até às canelas, usufruo de uma ténue sombra de palmeira que me deixa repousar, sem qualquer irritação, os olhos num cardume de zebrasoma tang, que por ali petiscam...

À extraordinariamente simpática moça que me perguntava:
-"Do you want some thing? Sir!", eu pedi um...
-"Sorry", mas não sei como se chama! Mas tome nota, "please"!

Num copo grande coloque nata fresca e quase gelada, batida com um pouco de caramelo e uma pitadinha de gengibre fresco... Depois, por cima, coloque com muito cuidado, para que se não misture, duas doses de café arábico aromatizado com canela...finalmente e com idêntico cuidado coloque uma dose de "Napoleon" devidamente saturado com menta... Por favor traga-me também uma palha de três olhais laterais...
O que ela trouxe prontamente e com uma perfeição na elaboração...
Huumm! Mesmo muito, muito bom!...
Como a vida é extraordinária!...
-"Excuse me Sir! One letter for you!"
Uma carta para mim? Aqui?
Com certeza que não passará de um engano!
Pego no envelope e...
O remetente sou eu!...

Parece impossível! Como me fui descobrir aqui! Logo desta vez que fiz tudo com um perfeito rigor e secretismo para jamais ser incomodado e descoberto e logo eu, numa perfeita falta de respeito por mim próprio, tenho o arrojo e a pouca vergonha de me incomodar a mim próprio... Estúpido!...

Bem! Vou pelo menos abrir o envelope e ver o que é que me venho dizer!...


"Aqui, hoje deste mês do ano que antecede o próximo.

Excelentíssimo senhor eu, eu venho através desta comunicar-me que, por razões que se prendem com términos do período de batimentos do meu miocárdio previstos no momento da expansão da não-matéria, também chamado criação primordial do universo, estou morto. Assim, e de acordo com a legislação cujo regulamento prevê o abate de indivíduos fora de prazo, deverei providenciar a emissão e atempada remessa de documentação provatória do meu estado de óbito.
Desde já informo-me de que tais provas terão de ser convincentes, sendo que no sistema têm dado entrada provas sem qualquer teor de veracidade do tipo:

"Não respiro há dois dias.", "A Angelina Jolie convidou-me para beber um copo e eu fiquei imóvel" ou até mesmo "Estou roxo e tenho vermes nas entranhas."... Enfim, faz-se de tudo para nos enganarmos.

Sem outro assunto, apresento-me as condolências pela minha morte.
Atentamente, eu."

Sinto-me enjoado. Mas eu estou-me a dizer que estou morto? Mas que me terá passado pela cabeça? Não me recordo de ter recebido qualquer aviso!

Huumm! Nunca fui de confiança! Com toda a certeza que sabendo que estaria para breve a minha morte estive atento ao correio e antes que eu visse o aviso escondi-o, ou até mesmo era capaz de o queimar na lareira, só para que de tal não tivesse conhecimento apanhando-me de surpresa e desprevenido...

Traí-me!
Nunca esperei ser o meu maior inimigo!
Deveria ter-me acautelado, no que diz respeito às minhas desonestas investidas!
Afinal de contas, poderia ter-me preparado convenientemente, com uma vida que neste momento me orgulhasse e por puro desrespeito e total desprezo condenei-me a uma inexistência virtuosa em que tudo ficou por fazer e dizer...
Se eu tivesse sabido...
As coisas maravilhosas que eu teria feito por aquele mundo!...

Já sei!
Vou-me enviar uma carta de resposta, onde me irei opor à decisão e impugnar o acto...

© Mário Rodrigues - 2010

Expulsa os bolores quando o prazer entrar...


Vem! Arranca esse nó da garganta!
Rasga essa pele negra escura que te aperta!
Tira essas lembranças da alma...
Ordena ao teu corpo que se desmembre...
Grita! Trai a dor na sua essência...
Ludibria o engasgo que se te ostenta...
Espera! Deixa o tempo chegar...
Espera! O tempo arruma as coisas no seu lugar...
O momento será breve! Algum momento chegará de assalto...
Algum momento chegará de manso...
Então, enche bem o peito de ar...
Grita até o firmamento quebrar...
Expulsa os bolores quando o prazer entrar...

...E sorri à vida... Não a deixes chorar...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Mulher...


"O que seria do mundo sem a mulher. Dai às paixões todo o ardor que puderes, aos prazeres mil vezes intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertereis o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas prelúdio do tédio."


Autor: Alexandre Herculano (1908)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Chamei-lhe felicidade...


Num olhar descuidado vi...uma pluma pelo ar...ia embalada por uma brisa, numa leveza sublime...quase translúcida, no entanto promete ser breve a sua vida, se os elementos mais brisa não providenciarem...

Chamei-lhe felicidade...

A minha felicidade está agora dançando nos olhos dos meus amores! Meus filhos e sua mãe são como o oceano de estrelas no cosmos da minha existência ansiando pela madrugada em que brotam os botões das flores da alegria...cobrindo-me de beijos de amor!...

A felicidade é servida em pequenas doses!...cumpre-nos a missão de lhe prolongar a duração e o prazer...

No entanto, cautela...seria triste não lhe reconhecer o aroma...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Today i will be a bomb...


Today i will be a bomb that when burst, i shit myself at the seams...

© Mário Rodrigues - 2010

Manhã (reedição)



Hoje, sem compreender exactamente porquê, acordei!

Acordei muito antes, do despertador que normalmente já costuma tocar depois de eu acordar. O dia ainda não tinha “nascido”. Olhei em redor… com a pouca luz que existia no quarto, observei a minha companheira de “guerra”, de um modo que me não lembro de alguma vez ter feito; meramente biológico. Realmente, a vida é uma grande maravilha. Dormia suave e silenciosamente, aquele complexo bioquímico, organizado numa verdadeira prova de mestria inimitável...
Levantei-me e fui até uma janela que abri… Um ar fresco e rico em oxigénio inundou-me os pulmões de assalto de um modo que quase me provocou dor…
O silêncio da manhã e o espectáculo de ver um dia nascer, é-me muito agradável. Mesmo muito. Utilizo-o muitas vezes na sequência de dias menos fáceis. Pergunto-me a mim mesmo, quanta sorte tenho em estar a assistir a um espectáculo, que apesar de se repetir diariamente, raramente reparo como é belo, e tão raramente usufruo da energia inigualável que ele me proporciona. Apesar da minha existência ser completamente indiferente a ele mesmo, (o nascer do dia).
Ao sair de casa vi uma minúscula flor violeta de quatro pétalas, que seria capaz de jurar que não existia numa pequena racha do muro de pedra. Aliás, nem tinha reparado bem que o muro era daquelas pedras; grandes... Aquele muro é um enorme habitat... Aquele muro… é o universo de muitos seres… Como será o “muro” que alberga o habitat de seres dos quais eu faço parte visto pelos olhos do transeunte que acorda cedo e repara num mero muro de pedra?

© Mário Rodrigues - 2009

terça-feira, 8 de junho de 2010

Mas quem escolhe a vaselina sou eu!...


Há algum tempo vivi uma situação que descrevi em "Eu não sou doutor!...", que me deixou "podre de raiva". Se naquela situação entendi a posição do interveniente, na que se passou hoje não entendo. Um dia destes, depois de a raiva me passar, talvez a descreva já devidamente lixiviada pelo tempo. Agora não. A vida tem feito de mim um homem de causas. A indignação, o inconformismo, a raiva e a vergonha, muitas vezes me têm empurrado para a defesa de posições que me custam etiquetas, cicatrizes e outras coisas...
Mais uma vez voltei a perceber que a maioria das pessoas tem tendência a "arruaçar" sem razão e a acobardar na frente do decisor quando a razão é exclusivamente delas. As pessoas "vendem-se" demasiadamente barato. Um indivíduo pseudo-bem vestido, que vomita uma série de incongruências, previamente seleccionadas para embaraçarem os outros, cala uma multidão que minutos antes na rua tinha jurado que o esfolava vivo; ao qual eu respondia que era preciso dialogar com a pessoa certa e do modo correcto...
Cinco, cinco minutos bastaram para que aquele energúmeno, que desde já declaro como sendo um óptimo cão de fila, tenha conseguido que trinta e duas pessoas ficassem a olhar para mim, com ar raivoso, por eu estar a confrontar, com convicção, o indivíduo com as suas incoerências assumindo uma posição de intransigência com relação às suas pretensões.

"...Então! Se o Sr. Dr. diz! Vamos arriscar!..."

"Escutem lá uma coisa meus amigos! O coiro que eu estou aqui a defender, nem sequer é o meu!..."

Entre amigos, eu costumo dizer:
"Se tiver de ser, desde que me digam, até me podem vir ao cu! Mas quem escolhe a vaselina sou eu!..."

Sim! Estou ligeiramente azedo...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Um acto de ira...


Azuis. De um azul...ganga. Tinham uma sola branca de um plástico rígido...o plástico era tão rijo que comportava-se como se de ferraduras em calçada de paralelepípedos de granito se tratasse. Na minha primeira corrida, com tal coisa enfiada nos pés, para além de não conseguir parar antes da parede da curva da estrada do "Zé Alves" e claro está ter feito frente ao muro com as mãos, pernas, barriga e não sei que mais, as minhas intenções em relação a tal adereço ficaram claras! Um desaparecimento súbito vinha muito a calhar!...
Aquela porcaria tinha custado trezentos sacrificados escudos num feirante da feira de Outubro. Para além do "recadinho" de que teriam de durar até às férias do Natal... Chegado a casa constatei que a unha do dedo grande do pé direito, já tinha escrito o seu testamento e preparava-se para abandonar este "vale de lágrimas".

"MÁRIO JOÃO...", quando a minha mãe me chamava Mário João...lá vem bronca!... "Olha-me estes ténis acabados de comprar...já todos esfolados na biqueira... Tu andaste a jogar à bola?"

Apesar de não jogar à bola pelo simples facto de sempre ter detestado bola, naquele momento, assumir que tinha dado inúmeros pontapés em tudo o que era parede e pedras, claro está com o único e legitimo objectivo de...os destruir rapidamente, poderia ter consequências pouco gratificantes para as minhas nádegas e afins...sendo que, concordar com a sugestão pareceu-me menos punível...

"Foi só um bocadinho!..."

"Ainda por cima és mentiroso! Tu nunca jogas à bola!"

"Porra! Chiça! Que falta de sorte a minha!..."

Pois, pois...foi isso mesmo! Pimba, lá está o Mário João a "enxugar" as calcinhas na zona "sagrada"... Mas agora a coisa mudou completamente de figura!
Ai o tributo já foi pago? Então já vos digo!...

É certo que andei com dores nos dedos dos pés durante mais de um mês, mas aqueles miseráveis ténis, em duas semanas foram queimados na raivosa fogueira da inquisição "mariojoanina"...

© Mário Rodrigues - 2010

Se eu quisesse, enlouquecia...



Hoje...hoje sinto-me um pouco...
Enfim...hoje se eu quisesse...

"Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?"

Autor: Herberto Helder

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Actos em síntese I


A existência de tudo no universo tem a sua proveniência. Devo considerar mesmo que a própria inexistência, também terá a sua proveniência.
Tudo provém de matérias ou ausência delas, de processos ou ausência deles, de discussões ou ausências das mesmas. Enfim, tudo é precedido de causas, sendo que os próprios efeitos, por sua vez, são causas outras de terceiros efeitos.
Posso considerar a possibilidade de a inexistência ter como proveniência uma existência que pela acção do tempo dá lugar a uma outra, sendo que entre ambas existe o nada, ou seja a inexistência. Este conceito, é bastante óbvio e simples de apreender, visto que se trata de coisa nenhuma.
Quando escrevo num papel branco uma letra, por exemplo a letra “A”, desenrola-se um processo em que da conjugação de varias existência: o papel, o lápis, a minha mão, a minha alfabetização, o controlo mecânico dos meus movimentos e muitas outras existências, que em si mesmas provêm de um universo interminável de muitas outras, vai atribuindo “existir” a algo inexistente. Em si, este facto já comprova a proveniência e o fim do nada.
Desmembrando a passagem do tempo em fracções ínfimas das mais pequenas fracções conhecidas do tempo, observo que em cada uma delas existe uma parte de um dos pontos, que em cadeia sucessiva, dão origem à linha que acaba por ficar com a forma, devido à acção das outras existências, da letra “A”. Ora, isto comprova que não existe o presente. Existe sim, o processo de passagem do passado para o futuro, sendo que entre ambos existe a inexistência que tem origem e fim em duas, e nunca a mesma, existências.
A interiorização deste processo permite-me colocar o meu discernimento em níveis de aceitação de realidades que, aparentemente, seriam de difícil compreensão e aceitação. A sensação de estádio primordial de consciência, o que desde já declaro como sendo por mim altamente procurado e desejado, incentiva-me a observar os actos, enquanto processos de acção, como sendo complexas simbioses de existências e inexistências.

© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 27 de maio de 2010

A propósito da ablação...



A propósito da ablação e das variadas mutilações genitais infligidas nas mulheres e crianças do sexo feminino por esse mundo... Pergunto-me; quando ouvirei que os homens por detrás dessas tradições são alvo de "carinhos" equivalentes e de iguais propósitos...

Submeter uma criança com menos de um ano a "ablação faraónica", com o pretexto de que se o não fizer ela não pára de chorar com comichão... É... uma estupidez de uma dimensão, ela sim, faraónica!

Há vidas mais "caras"! São é muito estúpidas...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Cinema Paraíso (Reedição)


Cinema Paraíso

Há já muito que tenho a sensação de ser o menino, “cinema paraíso”. Por detrás dos cordames que sustentam os cenários de um palco vital, vou espreitando... Ora curioso, ora envergonhado, ora indignado... De quando em vez, chamam-me ao palco. São necessários aplausos para que se encha um qualquer ego, insaciável... Os actores, esses representam uma comédia trágica que os contem em si mesma. De fora tenho a sensação de ser espectador único! Mas não! Vou encontrando outros...

© Mário Rodrigues - 2009

Tu foste...


Tu foste a merda da esterqueira da minha vida
Tu foste a pessoa que eu gostava nunca ter conhecido
Tu foste o ser asqueroso que me enoja
Tu foste um bajulador repugnante
Tu foste o azar da minha sorte
Tu foste quem jamais quero voltar a ver
Tu foste o tempo que perdi
Tu foste o ser que julga que o universo conspira contra si
Tu foste uma coisa que me fez muito mal...ou não...
Tu foste o chato alojado na pele do testículo do cão que era amigo do cão que conhecia o meu gato
Tu foste o estilhaço de esperma que apodrece no cortinado do quarto depois de saltarem as últimas gotículas provenientes do vigoroso sacudir do pénis
Tu foste uma coisa sem denominação que eu não consigo esquecer só porque me deste muitos problemas...mas com os quais aprendi a ser um homem melhor...

Por isso, meu monte de merda, asqueroso, repugnante e nojento, obrigado...


© Mário Rodrigues - 2010

Vem comer terra, que isso ajuda...


Vem comer terra, que isso ajuda
Vem-te arrastar, que isso arranha
Vem sangrar, que isso purga
Vem-te cortar, que ninguém estranha
Vem chorar, que isso traz uma ruga
Vem copular, que isso emprenha
Vem-te ferir, que isso castiga
Vem obedecer como uma formiga
Vem-te revoltar que isso rasga
Vem gritar que isso abre
Vem-te rir, que isso afronta
Vem-te gabar, que isso é mentira
Vem-te entregar, que isso conta
Vem comer, que isso alimenta
Vem alimentar, que isso mata
Vem admirar, que isso subjuga-te
Vem aprender, que isso inferniza-te
Vem esquecer, que isso anula-te
Vem ser grande, que isso escraviza-te
Vem ser pequeno, que isso mutila-te

Vem comer terra, que isso ajuda...


© Mário Rodrigues - 2010

domingo, 16 de maio de 2010

Pisco


Nestes últimos dias andei pelo bosque. Por lá, cada minuto que passa pelo meu corpo é uma hora perdida que recupero!... E a alma já mo reclamava...

Desta vez, e durante alguns dias, tive um companheiro incessante que sem qualquer receio privou comigo segredos daquela floresta que eu já mais saberia de outra forma. Ter durante várias horas, a distâncias que muitas vezes eram inferiores a dois metros, a presença de tão belo animal, foi para mim, sem qualquer dúvida, um enorme privilégio.

Muito obrigado senhor Pisco

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 10 de maio de 2010

- Nada! Não é nada!...


Hoje, pela manhã vejo alguém, a quem com um olhar pergunto:

- Então como estás?

Esse alguém me responde:

- Por aqui vou estando! Acordei antes do toque do relógio. Esperei um pouco e levantei-me, apesar de ainda cedo e de nada ter para fazer... Saí porque...porque se tivesse algo para fazer, sairia àquela hora. Não corro porque não tenho para onde... Simulo algum trabalho e...regresso já depois de serem reduzidas as hipóteses de perguntas. Perguntas que nunca sei responder de outro modo que não seja...um trejeito de boca acompanhado do respectivo encolher de ombros...o que em simultâneo faz com que sinta um moderado enrugamento do estômago acompanhado de pressão sobre o externo...

Com alguma preocupação pergunto:

- Mas então o que tens tu? Que se passa?

Esse alguém me responde:

- Nada! Não é nada!

Insistindo pergunto:

- Nada? Mas que tens? Que se passa?

Esse alguém me responde:

- Tenho quase tudo o que preciso! Incluindo coisas que não preciso! Há coisas que ainda não tenho, mas tenho tempo, para as ter! Há coisas que sempre ansiei, mas temo que já mais algum dia as tenha! Mas...acima de tudo lamento! Lamento muito as durezas dos corações! Corações que outrora moldados por mãos frias em pedra dura, amputados de quente ternura, não saibam pedir perdão! Que tantas vezes, nem tal careciam! Houvesse simplesmente um pegar de mão na mão... Mas ternura sei eu que têm! Apenas penas tenho, que tal amor e doçura, de paredes grossas seja refém! O que custa a muita gente, não é verdadeiramente o gesto de estender a mão! Fosse ele certamente, para em vez de pedir...conceder o perdão...


© Mário Rodrigues - 2010

sábado, 8 de maio de 2010

...Tinha uma pequena cerca...




...Tinha uma pequena cerca. Feita com alguns pequenos troncos espetados no chão e com umas varas mais compridas...presas com arames apodrecidos...
Nos pequenos troncos, havia fungos brancos que, silenciosamente, os iam decompondo.
Havia um pequeno prado que mais não tinha que o tamanho de um olhar...uma tília perto da estrada, um esguio choupo branco e...
...Aos pés, o prado tinha um riacho por onde escorriam as lágrimas de um menino. Por entre seixos do leito do riacho cresciam, pequenas e frescas bétulas, cujos troncos delgados serviam de esconderijo às pequenas trutas...o guarda-rios tinha pequeninos que reclamavam algo nos biquinhos...mas...
...O menino estava sentado com as suas pernitas cruzadas na erva molhada do prado. Encostara-se ao tronco de um freixo que...aquele freixo já muito lhe sabia das tristezas. Muitas vezes corria para junto dele. Abraçava-se-lhe ao tronco enquanto lhe escorria a dor e alimentava as águas frescas e saltitantes do riacho...deixava-se escorregar pelo tronco até prostrado nas ervas verdes e molhadas...
O menino gostava de um dia ter na sua mão um guarda-rios. Um guarda-rios em todo o seu esplendoroso azul e laranja de bico longo...vivaz...belo...
Ultimamente ia vendo apenas melros...grandes melros do tamanho de corvos, com os bicos negros como os corvos e que berravam como os corvos e a que todos chamavam corvos...mas o menino tinha esperança que eles fossem melros...melros que por capricho, não lhe queriam assobiar, nem saltar à frente com os seus bicos vermelhos...
Um dia destes o menino apanhou amoras, cerejas e framboesas que deixou numa covinha delicada no prado junto do riacho para que os seus melros as comessem... Mas os melros, depois de espezinharem os belos frutos, em frenesim esfarraparam a carniça apodrecida de um coelho que, velho, ali abandonou a vida...
Os guarda-rios... A cada mergulho renasciam das águas, como pequenos espíritos de vida das águas correntes...
O menino imaginava aventuras que formigas embarcadas nas pequenas folhas de bétula caídas nas águas, seguiam na direcção do longínquo oceano...

"Como será o oceano? Dizem que é muito largo! Mas eu, que já sou grande, de certeza que lhe vejo a outra margem..."

Por agora, o menino pouco mais via que os borrões de cor escorrida a cada lágrima caída nas asas de uma borboleta...


© Mário Rodrigues - 2010

Houve um dia...


Houve um dia que quis ser grande...mas caí...
Houve um dia que quis rir...mas chorei...
Houve um dia que quis chorar...mas não consegui...
Houve um dia que quis esquecer...mas enlouqueci...
Houve um dia que quis ser compreendido...mas magoei-me...
Houve um dia que pedi desculpa...mas enfureci...
Houve um dia que quis explicar...mas não quiseram ouvir...
Houve um dia que tive dores...mas um ataque sofri...
Houve um dia que gostei...mas triste me arrependi...
Houve um dia que caí...mas o direito de me levantar me negaram...
Houve um dia que fui feliz...mas com ódio me invejaram...
Houve um dia que quis desaparecer...mas na torre da igreja me colocaram...
Houve um dia que quis ser grande...mas deitado no chão me pisaram...
Houve um dia que achei ser lixo...mas com carinho e uma mão me levantaram...
Houve um dia que nada de bem fiz...mas que alguém me agradeceu...
Houve um dia que não prestei atenção...mas alguém se comoveu...
Houve um dia que nada fiz...mas que tudo me acharam...
Houve um dia que me arrependi...mas ainda assim me crucificaram...
Houve um dia que tudo fiz...mas que com nojo me pontapearam...
Houve um dia que quis viver...mas desprezado morri...

Houve um dia que de morte me apunhalaram...mas para desespero sobrevivi...



© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 4 de maio de 2010

Gyachung Kang ao longe...



A montanha esculpiu-lhes cada detalhe dos rostos. Ela mesma, levara-lhes os progenitores há já vinte invernos, quando tinham apenas doze anos. Irmãs gémeas, ficaram sós e entregues a si mesmas desde então.
O nascer do Sol era o momento em que com as mãos unidas olhavam a Gyachung Kang, de onde a brisa gélida da aurora lhes trazia as recomendações maternais lá dos lados do Nepal. A força que as unia, apesar de invisível, era inquebrável. Ambas eram tudo o que as duas tinham.
A distância da localidade mais próxima era tanta que, de longe a longe, uma delas a fazia numa alternância que doía prantos e clamores à outra.
Numa das viagens, um dia, uma delas por lá encontrou um rapaz bom e lutador. Na dureza das atitudes os gestos se demonstraram, alguns defeitos sem importância e umas tantas virtudes se notaram. Enamorados se amaram e algo se modificou...
Chegada junto da irmã, um pouco atrasada, a pergunta surgiu num olhar de cumplicidade que desde logo tudo explicou. As viagens começaram a ser um pouco mais amiúde, bem como um pouco mais demoradas...
A irmã da irmã enamorada, numa das últimas duras viagens feitas, por lá encontrou um rapaz bom e lutador. Na dureza das atitudes os gestos se demonstraram, alguns defeitos sem importância e umas tantas virtudes se notaram. Enamorados se amaram e algo se modificou...
Chegada junto da irmã, um pouco atrasada, a pergunta surgiu num olhar de cumplicidade que desde logo tudo explicou...
No silêncio de um prolongado olhar decidiram se juntar e desse modo a viagem fazer. Chegadas à localidade, ambas procuram os seus amores para com eles regressarem. Nos locais habituais, ambas encontraram um único, rapaz bom e lutador...
No silêncio de um prolongado olhar, ambas repararam que a vida, mais uma vez as juntara. Sem ciúme nem rancor para as suas terras veio o rapaz bom e lutador.
A partilha da vida e do amor, com o passar dos tempos, nos corações das irmãs provocou dor. Dor silenciosa mas cortante que em menos de um instante farpas agudas entre ambas veio pôr. Os dias foram passando e a força que as unia foi reclamando atitudes e fervor.
Numa manhã ao nascer do Sol, momento em que com as mãos unidas olhavam a Gyachung Kangde onde a brisa gélida da aurora lhes trazia as recomendações maternais lá dos lados do Nepal, num silêncio de um prolongado olhar, um sussurro se ouviu:

"Assim será..."

Então, com ambas envoltas em dor, uma a mão da outra largou e a casa regressou...
A outra estática ali ficou olhando os raios do Sol nascerem. Lágrima não tinha. Antes um tremor no coração.
Um corpo por terra ficou...
Alguns instantes passados atrás de si os passos pressente. Para trás se vira e de frente para a irmã, num silêncio de um prolongado olhar, um sussurro se ouviu:

"...acabou..."

Na manhã seguinte, ambas unidas por uma força que apesar de invisível era inquebrável, a caminho de seu labor passaram pelo monte de pedras e neve onde jazia a vida breve do rapaz bom e lutador...


© Mário Rodrigues - 2010

"Sussuarana"


Faz três sumana
Que na festa de Sant'Ana
O Zezé Sussuarana
Me chamou pra conversar
Dessa bocada
Nóis saímo pela estrada
Ninguém não dizia nada
Fomo andando devagar
A noite veio
O caminho estava em meio
Eu tive aquele arreceio
Que alguém nos pudesse ver
Eu quis dizer
Sussuarana, vamo imbora
Mas Virgem Nossa Senhora
Cadê boca pra dizer
Mais adiante
Do mundo, já bem distante
Nóis paremo um instante
Predemo a suspiração
Envergonhado
Ele partiu para o meu lado
Ó Virgem dos meus pecados
Me dê a absorvição
Foi coisa feita
Foi mandinga, foi maleita
Que nunca mais indireita
Que nos botaram, é capaz
Sussuarana
Meu coração não me engana
Vai fazer cinco sumana
Tu não volta nunca mais

Autores: Heckel Tavares - Luiz Peixoto

Como atropelar uma ratazana que saiu de uma sarjeta a correr.

O acto de atropelar é na realidade uma acção constrangedora!

Tenho desde já a afirmar e antes de mais, que o atropelamento terá de ser acidental. De contrário trata-se de um assassinato e os assassinatos são sempre condenáveis pelo que se assim for recusar-me-ei a fazer a síntese de tal acto e isto acaba já aqui!


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O monarca Acetum está em maus lençóis...


Estava abafado dentro de casa. Não o ar mas...o barómetro!
Demorei algum tempo, bastante, a desalojar-me da poltrona...Não me estava a sentir...desconfortável mas era-me urgente sair dela sob pena de sufocar!

Saí. Caminhei alguns metros e encontrei uma eira de pedras polidas. O vento soprava como sopra nas eiras. Parei ausente de tudo e até mesmo do local. Um gritar de uma urze despertou-me. Olho em frente e vejo um enorme mar!... Mescalina?... Bem sei... Não, não bebi Mescal nem nada...

O mar era profundo. Muito profundo. Mergulhei nele. Não me movimentei nem um milímetro para mergulhar...apenas os olhos fitos me levavam na direcção da incomensurabilidade...

A profundidade era tanta, que as bolhas de ar, devido à força gravitacional do núcleo terrestre já não conseguiam subir. No entanto, a pressão da água, dada a profundidade era tal que as expulsava desesperadamente. Assim, privadas de subir pela gravidade, concentraram-se no fundo do mar. Comprimidas contra o fundo do mar, formavam uma cápsula de ar esmagada contra o solo submarino. A pressão atmosférica no interior dessa cápsula era muito alta, cerca de trezentos kgf/cm².
Os Acetum eram seres em forma de disco plaquetário. Tinham uma estrutura social que incluía um monarca que era o primordial servo da teia social. Observo, curioso, o relacionamento entre os Acetum e o seu meio. Cuidavam-no como se estivessem a cultivar colonias de células vitais...
Apesar e hermafroditas os Acetum, cortejam-se e enamoram-se uns dos outros com muita dedicação e delicadeza. Vivem e conchas de náutilo compartimentadas que albergam dezenas de famílias.
De quando em vez, apareciam Suatrubs, que apesar de assexuados, emanavam intensos odores a feromonas. As conchas dos Suatrubs eram cónicas e eram deixadas ao abandono sempre que mais uma orgia se desenrolava.
Haviam grandes bailes de Acetuns com Suatrubs. Os Acetum eram muito ciumentos e com facilidade despoletavam batalhas de morte. Cada Acetum que sucumbia, renasciam três Suatrubs. A situação há já algum tempo que preocupa o monarca Acetum...

"Então? Que estás aí a fazer?" - Dizia-me alguém com uma voz que me era íntima!

"Acorda! Vamos para casa que está frio... Já é noite... Constipas-te!"

Pestanejei!...

O monarca Acetum está em maus lençóis...


© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma coisa é uma coisa...


Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!

Reflicto sobre a possibilidade de uma coisa ser outra coisa, assim como outra ser uma coisa.
Numa primeira abordagem à ideia surge-me a impossibilidade te tal. A menos que a coisa seja desprovida de coerência, identidade e orgulho, a troca pela outra ou a fusão em uníssono, dando origem à outra coisa, é totalmente impossível! Tal faria surgir uma terceira que teria a agravante de não ser nem uma nem outra, coisa, claro!
Isso não está previsto nesta reflexão.
Não obstante reconheço a possibilidade de uma coisa, apesar de não ser outra, poder através de processos complexos e insuspeitos, tais como uma acção proveniente do exercício de um acto, se transformar em outra coisa!
No entanto, este primordial processo de criação carece de um desconhecimento inicial da outra coisa, a fim de prevenir a existência do dito terceiro.

Mas agora reparo que tal acção indicia pouca honestidade da minha parte...

Extraordinário!...Perante a necessidade de ultrapassar um obstáculo, não hesitei, coagi-me a manipular a realidade, ferindo de morte e desrespeitosamente aniquilando a outra coisa, transformando-a na coisa, com o propósito convicto de atingir o meu objectivo!...

Serei eu de confiança?... Hum!... Francamente!...

Se a honra, a honestidade, o respeito e os meus princípios tivessem peso suficiente no meu carácter, atrasaria o relógio o tempo suficiente para que de novo pudesse proceder à reflexão de um modo eticamente correcto e honesto!
Mas, não posso deixar de reparar que isso não basta. Apesar de ter regredido no tempo, não anulei o processo de reflexão anterior! Assim terei de lidar com uma reflexão contaminada pelas conclusões da que a antecedeu...
Isso muda completamente o desenrolar espontâneo e aleatório do processo, visto que, poderei não resistir, à tentação hipócrita, de tentar parecer muito correcto nos meus actos e reflexões devido à consciência da conotação que me adveio da anterior experiência!...
Pois bem! Serei desmascarado!...
Reparem, tal como a espontaneidade, a aleatoriedade não existe. Rapidamente todos constatarão que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Tela branca, alva, calva...


Tela...
Tela branca, alva, calva...
Apesar de habitualmente não pintar, tive urgência em fazê-lo! Numa corrida furtiva, fui a uma loja e comprei uma tela branca, três pastéis pretos, duas bisnagas de acrílico vermelho...umas espátulas e carvão...

Em casa, isto é, num local de improviso montei o cavalete e agarrei a tela. Olhei demoradamente para o vazio da tela até ela ficar completamente branca...mas não consegui...ao fechar os olhos consegui vê-la finalmente vazia e branca!

Demorei-me um pouco, pelo receio de que a alvura de novo fugisse. Já está. Agora é que vou conseguir desenhar...

A fraqueza!...

Os momentos que tenho privado com ela, fazem-me sentir-lhe as formas. Formas esguias, ovais de coragem esbatida e medo berrante... Formas sem margens, de definições muito marcadas que quase rasgariam a tela, vermelhos incolores de vergonha...ou antes timidez... Não, são mesmo é de medo!

Tiro a tela do cavalete e ponho-a em cima de uma mesa. Vai-me dar muito mais jeito...
Com o pastel e o carvão traço marcas de vida, com rombos, curvas e vértices redondos como espinhos de roseira. Depois com a mão esfrego até atingir grandes zonas de sombra. Biombos de cobardia!...

Agora com o acrílico vermelho, vou traçar-lhe grandes áreas de ousadia!... Isso mesmo, ousadia e uns bouquets de coragem!...

Coloco uma boa porção da pasta na tela...mas aqui não me dá jeito!

Ponho-a no chão. Com uma espátula em cada mão atiro-me na disposição de a mutilar avidamente. Os biombos e os cenários de sombras haveriam de sofrer a brutalidade da coragem e da força. Calculo-lhes as formas das mandíbulas e em movimentos precisos e calculados começo a dar-lhes formas...

A luta é renhida, as sombras estendem-se com pouco esforço abafando o escarlate. As espátulas ficam moles como tiras de papel pardo!...aquilo não me agrada nada, sinto-me muito pouco potente, não obstante da minha valentia, luto contra aqueles riscos de carvão que a minha mão já tinha esbatido, mas que me exibem os caninos exuberantes!...

Num acto quase descontrolado salto com os dois pés juntos para cima da tela...
Então afundo-me... Enquanto me afundo olho para a superfície e vejo, em imagens pouco focadas, os pasteis e o carvão, nas suas enormes casacas de golas peludas rindo!... Rindo em gargalhadas de desdém que mostram os seus pútridos dentes negros em bocas de dominação!...

© Mário Rodrigues - 2010

domingo, 25 de abril de 2010

Abril ainda está por fazer…


Este, foi o primeiro post deste blog.
Hoje, republico-o na companhia da lágrima, que novamente me visita...

"segunda-feira, 27 de Abril de 2009

Abril ainda está por fazer…
Abril…. Vagueando pelo meio dos meus documentários…..,dei com os olhos no “Capitães de Abril”, sei bem que não é um documentário, mas na minha prateleira está nesse lugar, dos documentários. Tinha 4 anos no dia 25 de Abril de 1974. Não resisti a dar uma olhadela; aí a 225ª vez e mais uma vez e como da 1ª vez que o vi, chorei novamente… e principalmente chorei por continuar a sentir vontade de chorar quando o vejo. Abril, ainda está por fazer. Abril foi e é todos os dias enxovalhado e vergonhosamente tomado por bocas e mãos que nunca o entenderam mas sempre o usaram. Abril ainda está por fazer… Abril ainda está por fazer… Abril ainda está por fazer…

© Mário Rodrigues - 2009"

sábado, 24 de abril de 2010

Por favor, fiquem com um...São uma ternura!...

Fofos e indefesos. Nasceram com os corpos despidos de qualquer pêlo.
São um amor e uma ternura. Se pudesse, não faría isto.
Gostava imenso de ficar com todos mas a minha varanda tornou-se pequena.

Oferece-se ninhada de hipopótamos!


© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 23 de abril de 2010

De noite, todos os gatos são parvos!...


Já tinha por lá passados algumas vezes. Lembro-me que da primeira, pareceu-me uma vala normal mas com uns "aparelhos" para alguns exercícios da praxe. Depois a sua fama começou a ouvir-se por lá...

Algumas vezes depois, imaginava-lhe as manhas nas manhãs, bem como as eventuais possibilidades de não "arranhar" lá muito...

Numa noite, sem que nada o fizesse esperar, fomos todos em "passo de corrida" embrenhados nas trevas até que algo me pareceu não ser exactamente desconhecido!
Terá sido uma das piores horas da minha vida... Levei sem saber de onde vinha, chorei e os tímpanos estilhaçaram. Quando acabei...não sei! Sentia-me muito exausto!...

Hoje perante o que já vivi, recordo-a como uma mera prova física.
Davam-lhe o nome de "Vala escura".


© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

"Eu não sou doutor!..."


Existem "experiências" que tal como as "realidades", nos "arrojam" a alma por veredas cortantes que nos lavram a existência.

Cheirava mal! Tinha um odor que disparou as minhas ligações neurais como no primeiro dia que tive contacto com a drenagem urgente de um quisto dermóide...
Mas não! Não tinha qualquer coisa do género. Duas fracturas e laceração de tecidos...

"Onze ou doze..." pensei eu, enquanto imaginava a abordagem de preparação do campo para a cirurgia...

"Mas porque razão cheiras tão mal?!..."

Não consigo, apesar de algum esforço, imaginar o meu filho, que terá eventualmente a mesma idade, naquela situação...
Sinto-me responsável por aquela situação que desconheço completamente... Não sei de que modo, mas sinto-me...
Bem! Já conheço demais...

"O que se passou?..."
"Foi um doutor, no parque, que depois de "coiso" me deu um pontapé..."
"Um pontapé?..."
"...atirou-me a merda do carro para cima..., ...e fodeu-me o guito..."
"...dass! Como é que te metes nessas merdas?..."
"Oh! Doutor!..."
"Eu não sou doutor! ouviste?..."
"Yap, desculpe doutor!..."
"Eu não sou doutor..."
" Yap, enganei-me."
"Sim e então?..."
"Deu-me uma trancada com o carro e não me deu o guito porque diz que eu estava cheio de medo e não abria o cú..., diz que depois falava com o "Lâmpadas"!..."
"Lâmpadas?..., dass, ca puta de nome?!..."
"Depois da cirurgia temos de ir ter com o agente para ver ali umas fotografias de uns...senhores..."
"Oh! Doutor!... Népia. Eu não quero problemas..., só quero o guito para dar ao "Boss" para ele me orientar o coiso...!..."

Saltam-me gotas de suor da cabeça, quando me assalta a imagem de ver o meu filho ali naquela cena... Imagino-me a...

"Escuta puto! Vais ver as fotografias e vais te recordar de uns senhores doutores que vais ver...certo?"
"Népia doutor!..."
"Eu não sou doutor..."


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...


"És bom para ir aos figos!... Quando for aos figos levo-te comigo!..."

Esta expressão leva-me a pensar de imediato, que estou a falar de alguém muito alto. Aparentemente, posso ser empurrado de supetão para verdades absolutas em redor de apanhar figos! Isto é muito precipitado da minha parte. Avançar sem uma observação e reflexão do desenrolar do acto, leva-me a tomar conclusões precipitadas!

Teremos de observar toda uma série de factores para que mais fidedigna seja a conclusão. Em primeiro lugar temos de ter a certeza de que se trata de uma figueira. Depois temos de...esperem...o universo de variáveis é muito pouco finito...é quase infinito! Teríamos de reflectir sobre a espécie da figueira, a altura da figueira, a disposição da figueira, o tipo de terreno, etc, etc...

Eu, na qualidade de...
Enfim, vou já decidir uma serie de coisas, mas só para facilitar. Penso que já tomastes consciência, de que se assim não fosse, o resultado poderia ser demasiadamente apurado, sendo que isso tinha como consequência um refinamento na caracterização que só deixaria espaço para uma situação em particular, o que não servia o intuito de abordar a generalidade da situação.

Assim, trata-se de uma figueira de S. João, daquelas que dá uns figos enormes castanhos. O outro indivíduo era alto, mais alto que eu, mas não o suficiente para apanhar os figos com os pés no chão, assim sem mais nada. Parece-me imperioso que a época do ano em que se desenrola a situação seja a época em que a figueira tem figos. Aliás, isso não basta. De toda a época em que a figueira tem figos, só menos de um quinto do tempo é que corresponde ao período em que os mesmos estão maduros, sendo que no restante espaço de tempo, seria pouco...era um bocado parvo, apanhar figos verdes só por causa de uma experiência que ainda por cima, nem sequer se está a desenrolar efectivamente, porque está a ser imaginada!
Ora se se está a imaginar uma coisa, convêm que se imagine uma coisa com algum préstimo!...
Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...
Podíamos partir do pressuposto de que aquela figueira ainda não tinha figos! Podia ter havido uma grande queda de granizo na altura da floração e isso teria destruído todas a possibilidade de nascerem figos!...
Mas penso que nunca vi flores nas figueiras!...
A menos que aquela figueira, não desse figos mas sim...nozes por exemplo que não se estragariam com o granizo!... E nascem de flores... Mas e se o granizo estragasse as flores nas nozes?
Bem, mas isso resolve-se já porque as flores das nozes tinham nascido na primavera e o granizo tinha caído antes. Garantindo assim que as flores intactas persistiriam. Também mando alguma coisa!...
Não! Não pode ser! Porque então não era uma figueira! Ou então seria uma árvore com folhas de figueira e frutos de nogueira, e isso não era muito vulgar!... Só faltava o tronco ser de freixo, para que a casca rugosa permitisse que os esquilos subissem lá acima para comer as nozes... Mas nunca ouvi dizer que, "...és tão alto que te levo às nozes!...". Para além disso se os esquilos as comessem, não faria qualquer sentido ir apanha-las. Muito menos com um amigo alto, porque teríamos de dividir as nozes que seriam muito poucas...e de certeza que ele não ia querer dividir ao meio a colheita visto que tinha sido ele a apanha-las...logo não seria meu amigo!
Mas se ele nem sequer sabia de nada, como é que ia querer das minhas nozes!
Claro que sabia porque eu lhe tinha dito! Ele ia tão calado na vida dele!...
Foi um pouco precipitado da minha parte, ter-lhe dito par ir comigo aos figos, se eu ainda nada sabia acerca da figueira em causa! E da qualidade e quantidade dos seus frutos! E da disposição do terreno, etc, etc...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 20 de abril de 2010

Paro cristalizado de pavor!


Uma epopeia!
Oh! Que epopeia!

A manhã tinha acordado enevoada...

"Março marçagão, manhãs de inverno e tardes de verão..."

Pois bem, a manhã estava enevoada. Gigantescas meias esferas abobadadas de água abundavam por aqueles lados. Campânulas hirtas expostas às forças colossais da brisa matinal, como cápsulas marcianas, espalhavam-se por montes e vales...

Orvalho!...

A área era vastíssima! A vista alcançava...a mais de quinze centímetros de distância apesar do ofuscado da nébula. Tinha acordado de mais uma interminável campanha das trevas. Renhidas lutas onde houve lugar a uma enorme quantidade de baixas nas nossas guerreiras...
Aquelas térmitas eram odiáveis!
Mas um dia...venceremos definitivamente! Esta guerra fará com que nós, dada a nossa supremacia de "Argentus", um dia as derrotemos em todo o seu gigantismo...

Apesar disso, a manhã estava calma. Por entre a nébula, um raio de sol destaca o amarelo intenso de uma flor. Junto ao seu pé, tomo consciência da sua colossal altura!...
Qual será a sabedoria acumulada de tal ser? Que envergadura!...
Extraordinário!...Todo o universo estaria à mercê de meus olhos se o cume das sua pétalas eu alcançasse!...

Mas...porque não subo? É certo que o enorme tronco não oferecia muita aderência, no entanto, com esforço consigo ir subindo. Alcanço um pouco mais. E mais. E mais...

Paro cristalizado de pavor! O barulho ensurdecedor e as vibrações tremem a terra e ficam cada vez mais próximas. Sinto toda a fúria do vento tentando arrancar-me do escorregadio tronco. Uma enorme abelha vem cobrar o seu tributo, nos estames polinizados. Agacho-me e esforço-me para não ser arrancado.

O sol começa a despontar e os seus raios a trespassarem-me o corpo. A escalada é penosa. Os meus olhos já alcançam aquele amarelo quase ofuscante. Mergulho num derradeiro esforço que me leva ao cume das amarelas pétalas...

Ah!...

Tenho muita dificuldade em...apreender o que os meus olhos vêem...

O Universo... é muito maior do que eu algum dia poderia pensar...


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os Suricates em viajem



Cliquem em "Vamos ver..."

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Então! Não sejais gananciosos...


Recordo-me dele! Recordo-me como se nunca, mais tivesse visto.
Tinha um aspecto de algum bom trato não obstante do seu gigantismo. Há muito acomodado a uma mesa muito pouco farta, ocupava um espaço muito grande...digamos que apoderara-se de espaço de outrem.
Servia-se de tudo o que estava na mesa e não só...
Tinha muitos braços tentaculados. Cada um desses braços tinha apêndices e prolongamentos. Alguns prolongamentos não viviam permanentemente junto dele, mas vinham com frequência juntar-se-lhe para que assim se tornasse mais injustamente eficaz na sua orgia de destruição de recursos.
Havia braços que tinham terminações e apêndices bizarros; chicotes finíssimos que cortavam dorsos vergados, lâminas de fio diamantado com que infligia cortes profundos e eternamente hemorrágicos, pontas de dedos indicadores que desnudavam a alma a quem apontavam, falos que penetravam incessantemente os violados que bradavam de dor bem como clitóricas e nojentas vaginas de um bando de vermes que o bajulavam.
Era temido e nunca respeitado.
A tristeza de esta não ser uma recordação como as outras...só uma recordação, deixa-me convicto de que o pretérito o não arrancou das nossas historias mas antes, qual intemporalidade, permanece ali...ali...ali!
O seu urro de soprano melado, qual castrati pseudo-angelical do século XIX, com intuito de se disfarçar, deixa ver numa transparência de tule negro a sua completa acefalia que contrasta com a também completa ambição de poder.
Os cantares, como se de sereias dos mares do Sul se tratasse, embriagam apêndices que até então o repudiam e negam. Pouco tempo depois, ávidos e de gosmas a escorrer pelos cantos das bocas dão vivas à degradante causa. Ele então, com um focinho ternurento de Hades arrependido diz no seu tom de Dom Corleone:

"Então! Não sejais gananciosos... Somos todos irmãos!..."

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quebrando correntes...


A discussão era enorme, quase ninguém se entendia, ou ninguém mesmo...as circunstâncias da morte daquele triângulo...teriam de ser muito bem explicadas!
"Já disse inúmeras vezes que nada tive a ver com a morte desse triângulo!"
"Então porque te disfarçaste?"
"Usar gel é um disfarce?"
"Claro que é! Assim todos te julgam um ponto final! Ocultando a tua verdadeira identidade de asterisco...!

Tratava-se de um triângulo já idoso, chutado de folha em folha. Os geómetras ignoravam-no compulsivamente, olhavam-no com asco e desprezo. Em tempos idos, vítima de um compasso comparador de corte, sofreu um rasgo que o privou definitivamente da sua beleza de isósceles. Transformou-o numa aberração que nada tinha de escaleno, dando-lhe como lado uma cicatriz em forma de arco que lhe alterou o ângulo. Ali, moribundo naquele estirador, esvaia-se em tinta-da-china. As feições desapareciam-lhe numa alvura que o esgotava e levava à transparência.

"Quadrado sou eu e afirmo aqui, arriscando-me a levar com um traço azul por cima, que é assim, é assim que os que lutam a vida inteira, trabalhando honradamente para esses senhores octógonos e dodecágonos, que se julgam donos do mundo e que nos exploram até ao último ponto das nossas linhas! É assim que depois terminamos..."

"Já cá faltava essa conversa! Claro!
Eu sou filho de uma base de uma pirâmide quadrangular e de um honrado triângulo recto. Tenho origens muito humildes e se hoje sou octógono lutei muito!
Já fui um quadrado que cresci a apanhar as borras das borrachas que espartanamente aniquilam os defeituosos pelas mãos do criador, essa omnipresença que nos castra, com a ajuda de ferramentas de martírio e tortura, essas senhoras réguas e esquadros que nos querem fazer todos iguais arrancando-nos o nosso direito de sermos diferentes, até conseguir com muito esforço e trabalho, unir pontos perdidos e endireitar restos de arcos mal apagados, para assim conseguir ir juntando uma e outra recta para ser pentágono e hexágino até ao que sou hoje!
E eu? Não trabalhei honradamente?"

"Quem pensas tu que és? Tenho tudo o que tu tens! Temos os mesmos direitos! Ou será que só porque não tenho ângulos nem rectas sou inferior? O meu pai era base de um cone! Pois era! E depois? Sou uma circunferência e tenho muito orgulho nisso!"

"Pois tens muito orgulho, mas já mais chegarás a esfera! Teremos que almejar algo mais além..."

"Quem me dera...Quem me dera, não sendo nada, ser uma representação gráfica de um pensamento de uma criança, cuja mão leve desloca um lápis pela folha branca, dando-me formas curvas e elípticas...como o esvoaçar de uma borboleta..."

"Cautelas! Cautelas que se aproximam os volumes. Agora é que se vão partir os bicos..."


Uma mão arrebanha a folha. Da discussão não nasceu muito. Apesar do covil do inferno estar logo ali, com as suas lâminas triturantes, o criador atira-a para o cesto dos papéis...
Uma criança que por ali andava, dela logo fez um aviãozinho que atirou pela janela, qual porta celestial...
Uma gota atinge o aviãozinho. Cai em cima do último ponto de tinta do nosso triângulo isósceles...

Oh! Que trinados de trompetes celestiais! Assim, sob a forma de borrão, ele renasce com um novo esplendor e completamente livre nas suas formas... Quebrando correntes...


© Mário Rodrigues - 2010

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