
No outro dia, ia eu no vinte cinco, o eléctrico para os Prazeres, quando encontrei o Tintas o raposo. Já havia muito que nos não encontrávamos!...
- Então Tintas? Como estás? A Micas raposa?
- Olá Mário! Vai-se andando!
- O resto da raposada? Pergunto eu.
Enquanto nos sentávamos para que a viagem fosse um pouco mais confortável, junto a uma das janelas, passávamos ali ao "Corpo Santo", e íamos seguindo a nossa conversa...
- Olha Mário...estão bem! Eu é que tenho andado um pouco apreensivo...
- Então? Meu velho amigo canídeo!
- Eu e a minha Micas andamos um pouco "perdidos"!... Sabes os meus raposos já têm as suas idades e já seguiram à vida deles. O Mais novo arranjou uma raposita muito jeitosa e também está a organizar a vida dele... Agora ando mais a minha Micas a aprender a viver um com o outro... Os dois... Sozinhos...
Íamos passando ali pela Rua de São Paulo, na Bica, e o meu amigo Tintas fica a olhar pela janela pensativo...
- Que diabo Tintas! Estás com a Micas há tantos anos e tens de aprender a viver com ela? Agora?
- Mário! Quando me casei com a Micas, também eu saí de casa de meus pais. Agora vou-me apercebendo de que os meus pais, muitas vezes andavam à espreita de um pouco de vida, acorrendo e aturando-nos a nós e aos meus pequenos. Eles bem sabiam que eu e os meus irmãos andávamos furtivos em longas caçadas, mesmo porque essa também tinha sido a sua história. Então sempre que podiam, ou arranjavam umas lebres frescas para reunir a raposada, ou na falta de tal, chamavam os meus pequenos e os dos meus irmãos lá para a toca. Aquela balbúrdia dava-lhes cabo da cabeça, dos nervos e também de algumas carcaças de coelho, mas...também lhes devolvia uma agitação própria de grandes correrias... Por vezes, eu e a minha Micas não acedíamos com facilidade, pois sabíamos que os pequenos todos juntos são o "diabo" e que lhes davam com os focinhos nas paredes até partir. Os meus com os primos comiam este mundo e o outro, para além de chantagearem os avós com as maiores diabruras... Então fui reparando que eles, os meus pais, apesar de cansados, desejavam aquela agitação, desarrumação e balbúrdia toda, por razões especiais... Agora vejo o grande e inocente erro dos meus pais!...
A manhã estava um pouco abafada e aquele sol abrasador em "Santos" estava-me a assar os braços! Isto dantes tinha umas persianas...ia eu pensando...
- Ó Tintas! Mas que erro é que os teus pais fizeram?
- Sem qualquer noção disso, nem eu nem a Micas, depois de juntos tínhamos os nossos projectos! Certo?
- Sim! Penso que sim!
- Pois claro que sim! Uma toca em condições, umas peles para os dias frios de inverno, umas pombas e uns coelhos na dispensa, eu construía uns xilofones com os ossos das costelas dos coelhos e tinha uma banda impecável. A Micas, fazia compotas para a feira anual das melhores compotas...bem te recordas que tínhamos sempre mil coisas para fazer e, claro está, namorar...brincávamos um com o outro e fomos tendo dias felizes... Apareceram os pequenos e os dias passaram ainda a ser mais felizes. Só que, com o caminhar dos anos, os projectos da Micas e os meus foram sendo largados, com desculpas de que já não tínhamos tempo, nem paciência, nem idade e que tínhamos a raposada para olhar e criar e mais não sei o quê... Enfim... Reparei nisso, há algum tempo, antes do mais novo se "arranjar"... Ele teve fora uns dias a aprender umas novas maneiras para apanhar os "torcazes". Eu e a Micas dissemos um para o outro:
"Não temos cá o pequeno, vamos gozar umas férias catitas!..."
- Saíste-me cá um raposão!...
- Pois saí!... Fomos a uma toca de rodízio de roedores com frutas, que é um espectáculo...assim que acabamos viemos para a toca!... Começamos a ver um filme de galinhas...a meio, já estávamos fartos e chateados!...e para te ser sincero, começamos a olhar um para o outro e parece que já nem namorar sabíamos... Deixámos de saber o que fazer os dois sozinhos...esquecemos completamente como é que se vive a dois...
- Pois a raposada vai à vida e depois... Esquece-se...
- Ó Mário, mas a raposada nem nunca nos pediu, nem tem a culpa de eu e a minha Micas, termos descuidadamente transformado todos os divertimentos e ideias que tínhamos de coisas que fazíamos e outras que queríamos fazer, numa única coisa, quase obsessiva, que foi cria-los!... Vazamos as nossas cabeças de tudo o que lá tínhamos e enchemo-las exclusivamente com a ninhada e a sua criação... A ninhada depois de criada foi à vida dela e as nossas cabeças... Vácuo! Ficaram vazias! Não fizemos a gestão adequada das nossas prioridades emocionais e intelectuais... Acabámos de criar ninhada e ficámos sem nada para fazer... Pelo menos enquanto desejo e gosto. Um projecto que preencha a vida, o tempo e a vontade de amanhã ter uma serie de coisas para fazer no seguimento de um algo mais que já não seja criar a ninhada...
Já bebia um refresco. Se bem que me está a entrar aqui uma brisa vinda do Jardim da Estrela... Hum! Que fresquinho!...
- Ó Tintas, mas tu queres ser o Manuel de Oliveira...
- Não me importava, mas quero ter netos, quero brincar e divertir-me com eles, sem que eles em si sejam a minha razão de viver. Tenho de ter uma vida composta por várias causas, trabalhos e prazeres, onde a raposada esteja incluída, mas que não seja a minha bolha de ar vital. Por isso te digo, meu amigo, que realmente tenho andado um pouco apreensivo, porque me sinto quase como quando era um jovem raposito e andava aflito a tentar achar uma coisa para ser quando fosse grande...
Cá estamos. Campo de Ourique!... Tenho belas recordações deste bairro desde os tempos da tropa...
- Tintas! Queres beber uma limonada bem fresquinha debaixo daquelas sombras ali do jardim?
- Vamos a ela, caríssimo!...
...
...E sabes uma coisa? A minha Micas, já não é aquela raposa formosa que me flamejava os olhos com o seu passar, tal como eu também não, diga-se em abono da verdade... Mas...aqueles olhos e o seu focinho húmido ainda me deixam... à procura de "lebre"...
© Mário Rodrigues - 2010