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quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O portão forjado

Estava sinceramente agradado por, já à porta de casa, ter regredido um pouco e ter ido buscar o casaco. Era um casaco já bastante usado, cinza de uma malha polar "débil", mas que se tornara largo e confortável para os períodos em que estava a "hibernar" pelas proximidades de casa. Com as mãos nos bolsos, fecho éclair bem corrido até bem perto do pescoço, ia dando uns passos... Involuntariamente, ia atirando com um pé para a frente do outro, de modo que a cinética do tronco, não ultrapassasse perigosamente o eixo do centro de gravidade, o que em duas palavras, diria - caísse estatelado.

Ia a pensar em como seria difícil, não pensar em nada! Procurava uma inexistente possibilidade de conseguir não pensar em nada...

O passeio tinha cerca de dois metros de largura, ladeado do meu lado esquerdo por um muro, relativamente alto, com grandes zonas cobertas de hera, pedaços de reboco centenário prometendo a sua iminente queda, as pedras, as do passeio, pequenos cubos irregulares de calcário branco, estavam polidas e húmidas do intenso orvalho da noite. Este conjunto, muro e passeio, tinha a sua disposição aberta, coberta nas alturas pelas altas folhagens de vários carvalhos, tílias e castanheiros, na direcção do norte. O Sol nascera-me nas costas, garantindo uma húmida sombra na quase totalidade do dia.

Não obstante, um condenado, no dia em que sabe da sua sentença de morte, e possivelmente, depois da revolta, desejaria que a mesma fosse executada de imediato. Esse, deve ter a cabeça a explodir de tantos pensamentos. Uma boa parte da pena, senão mesmo a pior, é a tentativa inglória de querer por ordem hierárquica nos pensamentos e sentimentos nesses momentos. A dor do tempo que ainda falta, que possibilita a manutenção de tal inferno.

A abundância da humidade facultava a proliferação de um verdete, perigosamente escorregadio. Aquele "L" contínuo, composto pela união do muro com o passeio, prolongava-se no horizonte. Lá, bastante ao fundo, um feixe de raios de Sol, desciam a quarenta e cinco graus, antecipando a ainda tardia chegada do meio-dia e do sul, aproveitadores eficazes da interrupção do muro que fazia adivinhar um portão e de um céu com tendências a limpo adornado por cúmulos alvos e fofos.

Parado, a olhar para os cinco ou seis degraus que o levam ao cimo da plataforma da guilhotina ou da forca ou até mesmo do cepo do carrasco... Pensará ele - Já falta pouco!... Penso que o pânico o abraça. O ser humano tem por natureza, o sentimento de morte eminente. É um sistema de alarme extremo com vista a salvar a vida. Será controlável e manipulável? Não me parece, pelo facto de que é completamente involuntário. Não sei se o saco de pano negro na cabeça produzirá efeito! Aliás, acho que produz, mas qual? A cabeça, nessa ocasião estará vazia ou a velocidade e quantidade de sentimentos e pensamentos, provoca o colapso e paragem da consciência? Todos os sentidos estão em funcionamento, ainda, isso é certo! Com a cabeça pendente da espera da lâmina da guilhotina, escuta o destravamento da lâmina de, também quarenta e cinco, mas desta feita quilos e não graus... Curiosa esta coincidência!... Ambos os quadros, este e os raios de Sol, metamorfoseiam a vida e a morte!... Vai ouvindo o consequente silvo da descida da lâmina pelas corrediças. Parecerá ensurdecedor e eterno esse silvo? Não tenho a certeza que exista, nesse momento, alguma luta interior para contrariar a cena!... Possivelmente será um silvo de libertação. Finalmente!...

Com o olhar no chão, reparo agora que estou a caminhar, à razão de uns trinta passos por minuto, e com o olhar no chão! Estando eu a andar tão devagar, ainda estou com medo de tropeçar? Quando ando na correria no trabalho, não ando a olhar para o chão!... Mesmo porque se assim fosse, andava aos encontrões em toda a gente por os não ver!... E isso seria no mínimo constrangedor! Por que razão não vou a olhar em frente? Acho que isto, de quanto mais devagar ando, mais para baixo olho, já é uma imagem de marca. Sempre assim foi! Até já me chamaram uns "nomitos" por este meu hábito de andar com "os olhos no chão".

Fisiólogos e estudiosos da neurologia e da consciência afirmam que os neurónios funcionam e alimentam pensamentos, mesmo com a cabeça decepada, durante cinco segundos!... Como sabem eles dos cinco segundos? E se forem dez? Ou até mesmo trinta como chegam a defender alguns? Estará nessa ocasião a cabeça a não pensar em nada? Isso seria o derradeiro contra-senso!

Se, empiricamente, já cheguei à conclusão de que não se consegue não pensar em nada, em ultima análise porque isso em si, já é pensar em alguma coisa, como é que estando a cabeça em funcionamento não pensaria em nada? Parece-me claro que realmente pensa. Pensa o quê? Quais poderão ser os pensamentos de uma cabeça que acabou de ser decepada do resto do corpo há instantes?
Perdi a vida?
Já está? Finalmente?
Agora é que vai ser?
...

É!... Realmente é um portão. Enorme, forjado em ferro grosso e forte. O ferreiro foi muito sensível ao fazê-lo! Nota-se o detalhe e o esmero no trabalho! Das duas, três; ou ia receber boa maquia pelo trabalho, ou o nobre do palácio que estava por detrás deste portão era um bom homem querido por todos. Também poderia ser só rico pela força do trabalho escravo e do chicote!... Não, não era de certeza! Notava-se no forjado das cornucópias e dos caracóis, uma dedicação suave e meiga...se o contrário fosse, notar-se-ia a raiva e a brutalidade do ferro... O ferreiro, esse não o encobriria!...

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A charrete de tule.



A charrete de tule tinha mil cocheiros sentados em parapeitos nos dorsos de mil cavalos. Os mil cocheiros tinham mil casacas molhadas pelas lágrimas de mil corvos brancos que voavam sob os cascos de mil cavalos verdes com crinas de medo. Os cocheiros divergiam permanentemente em mil trilhos sob novecentas e noventa e nove insurreições dos restantes. Mil chapéus altos adornavam as mil cabeças acéfalas dos mil cocheiros que com mil rédeas de secos nervos de mil homens tangentes, incitavam em mil galopes frenéticos os mil cavalos verdes de cascos de ouro com mil diamantes e crinas de medo.
A charrete de tule voava de portas escancaradas.
A charrete de tule transportava coisa nenhuma em quantidades generosas. O vácuo, aspirava-lhe para o interior nada, sendo que nada de lá saía bem como nada lá ficava.
A charrete de tule tinha mil rodas de cristal que reflectiam imagens de mundos exteriores ao interior do seu mundo.
A charrete de tule era feita de tule. O tule era feito de ânsia e desejo em filamentos de escarpa tecidos em teias de neblina. Por sobre a charrete de tule, deslizavam mil esperanças vestidas a rigor. Mil esperanças de mais não voltar a mil homens que esperavam mil coisas terríveis. Mil homens de mil amores por mil donzelas que voavam, quais corvos brancos sob os cascos de mil cavalos verdes com crinas de medo. Mil terrores eram esperados por mil homens, acéfalos de casacas molhadas pelo suor de mil mães parindo. Mil mães parindo a esperança de mil salvadores, correndo em mil charretes de tule, chegarem ao mundo interior do seu mundo, porque lá fora, no exterior, já mil milhares de milhão de estrelas voavam sensatas e errantes.
A charrete de tule, era a última de mil charretes divinamente enviadas para mil mentiras entregarem a mil homens de mil esperanças maravilhosas, de que com tais mil mensagens divinas, mil vezes fizesse um milhar de alegrias em mil felizes corações de mil homens justos...

Mas, a charrete de tule...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Só posso cheirar muito mal!...

Ontem, enquanto carregava uma considerável quantidade de caixas nas mãos, ia a entrar para um dos edifícios em pleno "Marquês do Pombal", no centro da cidade de Lisboa, quando o sapatinho do menino escorrega na pedra polida do degrau da entrada, e eis que, o menino dá três piruetas e dois mortais, estatelando-se no meio da bela calçada lusitana, rodeado de trinta e seis pequenas caixas de cartão.
Se é certo que efectivamente de modo algum me magoei, também é certo que o máximo que obtive dos vinte ou trinta compatriotas que assistiram ao número de circo, foi umas risadas e uns chutes numas caixas que ficaram a estorvar o esvoaçante andar de uma bela menina. Ninguém, mas rigorosamente ninguém, esboçou o menor gesto de ajuda a levantar-me ou a apanhar as ditas caixas!...
Isto só pode querer dizer uma coisa... Só posso cheirar muito mal!...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Mas... O que eu gosto mesmo é...


Mas... O que eu gosto mesmo é de Dodó!...

Principalmente se poder contar com a companhia do Anthony Hopkins e assentados debaixo de uma alfarrobeira conversarmos de temas que nos são queridos como a constituição fecal dos ornitorrincos dois meses após o cio... Já sei que Santo Anselmo vai argumentar que duvida que esses bichos tenham tal coisa... Ainda se fosse um desejo inexplicável e incontrolável que os impulsionasse a perpetuar a espécie!...

Epá!... Está bem!...

© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Centelhas cintilantes de luz gelada...


Gotas, gotas, gotas; muitas gotas de cristal...

Ontem, sem esforço e pela acção da brisa, acordarei... Acordarei de um sono que nem pesadelos nem sonhos terá. Acordarei suavemente, precedido de uma expiração demorada que culminaria com a inspiração de centelhas de luz branca...no acto de em nada actuar.
Ontem, quando eu despertar chegar-me-ei à beira da pétala única da flor do jarro e de lá, com os olhos fechados, veria o ponto infinito de onde "desconvergem" as centelhas cintilantes de luz gelada. Elas dirigir-se-iam a mim em movimentos cónicos e de trajectória indefinida. Inspiraria, daí, dessa beira, nada porque nada haveria à partida...

Amanhã, quando terminou a noite que não começou, apesar do aparecimento do segundo sol que permitiu o alinhamento aleatório, fruto das regras inaplicáveis, dos astros, eu que era muitas pessoas teria tido a oportunidade de em pequenos actos microcósmicos, prever que um dia assim será!...
As centelhas virão até nós e perguntar-nos-ão se o vácuo das nossas vidas teve alguma cor...
...perguntar-nos-iam se está na hora de acordarmos!...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Enfim, este é o Deus que me convém!...


Isso?... Isso não é nada!... Aliás, tu nem sabes o que é!
Jamais serás iluminado pela luz plena, inebriante e penetrante que enche inteiramente a tua existência redundante. A do meu Deus!...

Havia vários, no entanto fiquei com este, porque este é o que mais me convêm!

...Este:

Mata os ímpios
Destrói os infames
Castiga os que me incomodam
Devolve-me as riquezas
Abunda-me com deleites
Castiga-me no rancor do remorso
Apascenta a minha ganância
Justifica os meus crimes
Fundamenta a minha crueldade
Justifica a minha estupidez
Castra-me a vida
Alegra-se na minha conspiração
Auxilia na ambição e mais, muito mais...

Se sofro é ele
Se tenho fome é ele
Se meu filho morre é ele
Se corro é ele
Se durmo é ele
Se vilmente me iludo é ele, mas não só...

Quando mato é por ele
Quando usurpo é por ele
Quando castro é por ele
Quando privo é por ele
Quando minto é por ele
Quando desrespeito é por ele
Quando intransijo é por ele
Quando a verdade altero é por ele
Quando da ingenuidade me aproveito é por ele
Quando da boa-fé abuso é por ele...é assim porque está escrito,

Nas palavras que escrevi
Nas verdades que encobri
Nas mentiras que defendi
Nas realidades que alterei
Nos monstros que pari
Nas jugulares que cortei
Nos corações que feri
Nos inocentes que queimei
Nos movimentos que bani
Nos obedientes que mal tratei
Nas virgens que violei
Nos homens que matei...

...Enfim, este é o Deus que me convém!...

© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Anúncio: "Precisa de pena"


- Deixem-me passar! Quero entrar! Vá lá, cheguem-se para o lado! Vão falar para mim e eu tenho de ouvir!...

Alguém, no alto da tribuna, tosse e prepara a garganta para falar. Beberica um pouco de água e alinha o casaco. Segura algumas folhas de papel que nada tinham escrito e bate com elas de topo...

- Atenção!...
...
- Atenção! Venho hoje aqui para solicitar que tenhamos pena! Pena de nós próprios e também, não esquecer, de nós mesmos!
...
- Nós, deploráveis desprezados do cosmos, fruto dos grãos de trigo que caíram no meio dos áridos seixos, germinando em forma de fracasso, que muito lutamos para nada almejar, a menos que de mesquinhas estupidezes se trate ou de uma ou outra inveja tacanha. Nós que não mudamos nem quando morremos, não nos desperdiçámos com amores porque os felizes contra nós conspiram, e esvoaçamos como melgas e borboletas da traça, em redor de uma lâmpada à noite... De nós ninguém se lembra!... Teremos todos de, em lamuriosos brados, afirmar que somos coitados e pedir que tenham pena de nós!...

A plateia, completamente envolvida por aquelas palavras sábias, sem vacilar um instante que seja, grita em uníssono:

TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
...
- Atenção!...
...
- Vêm-nos dizer para nos deixarmos de ser ignóbeis e traiçoeiros! Pedem-nos para abandonarmos a cobardia e a mediocridade! Dizem!... Atrevem-se a dizer que deveríamos procurar ter magnificência, bravura e audácia! Que deveríamos substituir as "naftalinas" por brisas do mar!... Do mar!... Vejam só! De em vez de nos lamentar deveríamos sonhar e trabalhar!... A loucura é tal, que nos pedem para lutarmos por um mundo melhor!... Ahahahaha!!!...

TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
TENHAM PENA DE NÓS!...
...

© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Empalados em arenas.


...Segui pelo corredor até ao fim. O corredor era bastante largo e longo. No chão uma alcatifa vermelha, as paredes forradas a nogueira eram relativamente baixas. Ao longo do corredor, junto das paredes estavam figuras de dezenas de pessoas. Todas eram conhecidas. Cantores, pintores, escritores, cientistas, filósofos, etc... Como se fosse estatuas de cera... No final do corredor depois de descer dois suaves degraus encontro duas enormes portas de madeira muito clara parecia abeto ou faia...

Quando empurrei as portas vejo uma espécie de arena toda forrada de veludos e acolchoados, conferindo um ambiente de absoluto e luxuoso conforto.
Por todo o lado existiam varas de madeira com pontas afiadas espetadas no chão com os bicos para cima... Em todas elas estavam pessoas empaladas que sorriam e conversavam alegremente entre elas. Alguns discutiam negócios, taxas de juro, a beleza de senhoras ali ao lado... Tudo completamente indiferente ao insignificante facto de estarem todos empalados...
Reparei que todas as varas tinham uma inscrição, "sapere - tenere - potere"!

Havia oradores, que também empalados, diziam palavras extraordinárias de ordem, de incentivo, de glória, honra e até mesmo esperança... No entanto ninguém lhes parecia dar grande atenção com excepção dos que aguardavam que eles terminassem para eles próprios começarem as orações deles...

Bastante assustado ia passando entre eles observando aquele espectáculo dantesco. De dentro do ventre de uma mulher um feto coloca a cabeça para fora gritando muito zangado e indignado!... Morde-me voraz. Da ferida causada pelas dentadas no meu braço escorreu... Incompreensão, admiração e um pouco de escárnio...

Reparo também que ali andam alguns animais, também eles um pouco assustados. No entanto não estão empalados. Têm um comportamento normal com excepção do facto de morrerem muitos e sem razão aparente. Passado algum tempo de eu por ali andar ouço uma voz nos altifalantes que dia:

"Informamos o senhor, que terá de escolher o local onde pretende fixar a sua existência. Não poderá manter-se mais tempo a por em risco a ordem."

Estranho, vejo que já todos me olhavam identificando-me como sendo o "senhor" de que se falava no altifalante!

Reparo então, que eu próprio me encontrava trespassado por uma daquelas lanças...


© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Prelúdio de uma inexistência anunciada...




Assim haja Deus... Na verdade o paraíso existe!...

São sete horas e vinte e três minutos da manhã neste preciso momento. Esta brisa, que deve ter aproximadamente vinte e muitos graus célsius, dada a sensação de conforto que me transmite, passa-me pelo rosto e entra-me por entre os botões da camisa "cru", de linho fresco, já entreabertos, transmitindo-me um bem-estar e uma calma que nunca experimentei!...

Recostado na cadeira de lona e madeira, com o oceano quente que me banha até às canelas, usufruo de uma ténue sombra de palmeira que me deixa repousar, sem qualquer irritação, os olhos num cardume de zebrasoma tang, que por ali petiscam...

À extraordinariamente simpática moça que me perguntava:
-"Do you want some thing? Sir!", eu pedi um...
-"Sorry", mas não sei como se chama! Mas tome nota, "please"!

Num copo grande coloque nata fresca e quase gelada, batida com um pouco de caramelo e uma pitadinha de gengibre fresco... Depois, por cima, coloque com muito cuidado, para que se não misture, duas doses de café arábico aromatizado com canela...finalmente e com idêntico cuidado coloque uma dose de "Napoleon" devidamente saturado com menta... Por favor traga-me também uma palha de três olhais laterais...
O que ela trouxe prontamente e com uma perfeição na elaboração...
Huumm! Mesmo muito, muito bom!...
Como a vida é extraordinária!...
-"Excuse me Sir! One letter for you!"
Uma carta para mim? Aqui?
Com certeza que não passará de um engano!
Pego no envelope e...
O remetente sou eu!...

Parece impossível! Como me fui descobrir aqui! Logo desta vez que fiz tudo com um perfeito rigor e secretismo para jamais ser incomodado e descoberto e logo eu, numa perfeita falta de respeito por mim próprio, tenho o arrojo e a pouca vergonha de me incomodar a mim próprio... Estúpido!...

Bem! Vou pelo menos abrir o envelope e ver o que é que me venho dizer!...


"Aqui, hoje deste mês do ano que antecede o próximo.

Excelentíssimo senhor eu, eu venho através desta comunicar-me que, por razões que se prendem com términos do período de batimentos do meu miocárdio previstos no momento da expansão da não-matéria, também chamado criação primordial do universo, estou morto. Assim, e de acordo com a legislação cujo regulamento prevê o abate de indivíduos fora de prazo, deverei providenciar a emissão e atempada remessa de documentação provatória do meu estado de óbito.
Desde já informo-me de que tais provas terão de ser convincentes, sendo que no sistema têm dado entrada provas sem qualquer teor de veracidade do tipo:

"Não respiro há dois dias.", "A Angelina Jolie convidou-me para beber um copo e eu fiquei imóvel" ou até mesmo "Estou roxo e tenho vermes nas entranhas."... Enfim, faz-se de tudo para nos enganarmos.

Sem outro assunto, apresento-me as condolências pela minha morte.
Atentamente, eu."

Sinto-me enjoado. Mas eu estou-me a dizer que estou morto? Mas que me terá passado pela cabeça? Não me recordo de ter recebido qualquer aviso!

Huumm! Nunca fui de confiança! Com toda a certeza que sabendo que estaria para breve a minha morte estive atento ao correio e antes que eu visse o aviso escondi-o, ou até mesmo era capaz de o queimar na lareira, só para que de tal não tivesse conhecimento apanhando-me de surpresa e desprevenido...

Traí-me!
Nunca esperei ser o meu maior inimigo!
Deveria ter-me acautelado, no que diz respeito às minhas desonestas investidas!
Afinal de contas, poderia ter-me preparado convenientemente, com uma vida que neste momento me orgulhasse e por puro desrespeito e total desprezo condenei-me a uma inexistência virtuosa em que tudo ficou por fazer e dizer...
Se eu tivesse sabido...
As coisas maravilhosas que eu teria feito por aquele mundo!...

Já sei!
Vou-me enviar uma carta de resposta, onde me irei opor à decisão e impugnar o acto...

© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Vem comer terra, que isso ajuda...


Vem comer terra, que isso ajuda
Vem-te arrastar, que isso arranha
Vem sangrar, que isso purga
Vem-te cortar, que ninguém estranha
Vem chorar, que isso traz uma ruga
Vem copular, que isso emprenha
Vem-te ferir, que isso castiga
Vem obedecer como uma formiga
Vem-te revoltar que isso rasga
Vem gritar que isso abre
Vem-te rir, que isso afronta
Vem-te gabar, que isso é mentira
Vem-te entregar, que isso conta
Vem comer, que isso alimenta
Vem alimentar, que isso mata
Vem admirar, que isso subjuga-te
Vem aprender, que isso inferniza-te
Vem esquecer, que isso anula-te
Vem ser grande, que isso escraviza-te
Vem ser pequeno, que isso mutila-te

Vem comer terra, que isso ajuda...


© Mário Rodrigues - 2010

sábado, 8 de maio de 2010

...Tinha uma pequena cerca...




...Tinha uma pequena cerca. Feita com alguns pequenos troncos espetados no chão e com umas varas mais compridas...presas com arames apodrecidos...
Nos pequenos troncos, havia fungos brancos que, silenciosamente, os iam decompondo.
Havia um pequeno prado que mais não tinha que o tamanho de um olhar...uma tília perto da estrada, um esguio choupo branco e...
...Aos pés, o prado tinha um riacho por onde escorriam as lágrimas de um menino. Por entre seixos do leito do riacho cresciam, pequenas e frescas bétulas, cujos troncos delgados serviam de esconderijo às pequenas trutas...o guarda-rios tinha pequeninos que reclamavam algo nos biquinhos...mas...
...O menino estava sentado com as suas pernitas cruzadas na erva molhada do prado. Encostara-se ao tronco de um freixo que...aquele freixo já muito lhe sabia das tristezas. Muitas vezes corria para junto dele. Abraçava-se-lhe ao tronco enquanto lhe escorria a dor e alimentava as águas frescas e saltitantes do riacho...deixava-se escorregar pelo tronco até prostrado nas ervas verdes e molhadas...
O menino gostava de um dia ter na sua mão um guarda-rios. Um guarda-rios em todo o seu esplendoroso azul e laranja de bico longo...vivaz...belo...
Ultimamente ia vendo apenas melros...grandes melros do tamanho de corvos, com os bicos negros como os corvos e que berravam como os corvos e a que todos chamavam corvos...mas o menino tinha esperança que eles fossem melros...melros que por capricho, não lhe queriam assobiar, nem saltar à frente com os seus bicos vermelhos...
Um dia destes o menino apanhou amoras, cerejas e framboesas que deixou numa covinha delicada no prado junto do riacho para que os seus melros as comessem... Mas os melros, depois de espezinharem os belos frutos, em frenesim esfarraparam a carniça apodrecida de um coelho que, velho, ali abandonou a vida...
Os guarda-rios... A cada mergulho renasciam das águas, como pequenos espíritos de vida das águas correntes...
O menino imaginava aventuras que formigas embarcadas nas pequenas folhas de bétula caídas nas águas, seguiam na direcção do longínquo oceano...

"Como será o oceano? Dizem que é muito largo! Mas eu, que já sou grande, de certeza que lhe vejo a outra margem..."

Por agora, o menino pouco mais via que os borrões de cor escorrida a cada lágrima caída nas asas de uma borboleta...


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 3 de maio de 2010

O monarca Acetum está em maus lençóis...


Estava abafado dentro de casa. Não o ar mas...o barómetro!
Demorei algum tempo, bastante, a desalojar-me da poltrona...Não me estava a sentir...desconfortável mas era-me urgente sair dela sob pena de sufocar!

Saí. Caminhei alguns metros e encontrei uma eira de pedras polidas. O vento soprava como sopra nas eiras. Parei ausente de tudo e até mesmo do local. Um gritar de uma urze despertou-me. Olho em frente e vejo um enorme mar!... Mescalina?... Bem sei... Não, não bebi Mescal nem nada...

O mar era profundo. Muito profundo. Mergulhei nele. Não me movimentei nem um milímetro para mergulhar...apenas os olhos fitos me levavam na direcção da incomensurabilidade...

A profundidade era tanta, que as bolhas de ar, devido à força gravitacional do núcleo terrestre já não conseguiam subir. No entanto, a pressão da água, dada a profundidade era tal que as expulsava desesperadamente. Assim, privadas de subir pela gravidade, concentraram-se no fundo do mar. Comprimidas contra o fundo do mar, formavam uma cápsula de ar esmagada contra o solo submarino. A pressão atmosférica no interior dessa cápsula era muito alta, cerca de trezentos kgf/cm².
Os Acetum eram seres em forma de disco plaquetário. Tinham uma estrutura social que incluía um monarca que era o primordial servo da teia social. Observo, curioso, o relacionamento entre os Acetum e o seu meio. Cuidavam-no como se estivessem a cultivar colonias de células vitais...
Apesar e hermafroditas os Acetum, cortejam-se e enamoram-se uns dos outros com muita dedicação e delicadeza. Vivem e conchas de náutilo compartimentadas que albergam dezenas de famílias.
De quando em vez, apareciam Suatrubs, que apesar de assexuados, emanavam intensos odores a feromonas. As conchas dos Suatrubs eram cónicas e eram deixadas ao abandono sempre que mais uma orgia se desenrolava.
Haviam grandes bailes de Acetuns com Suatrubs. Os Acetum eram muito ciumentos e com facilidade despoletavam batalhas de morte. Cada Acetum que sucumbia, renasciam três Suatrubs. A situação há já algum tempo que preocupa o monarca Acetum...

"Então? Que estás aí a fazer?" - Dizia-me alguém com uma voz que me era íntima!

"Acorda! Vamos para casa que está frio... Já é noite... Constipas-te!"

Pestanejei!...

O monarca Acetum está em maus lençóis...


© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma coisa é uma coisa...


Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!

Reflicto sobre a possibilidade de uma coisa ser outra coisa, assim como outra ser uma coisa.
Numa primeira abordagem à ideia surge-me a impossibilidade te tal. A menos que a coisa seja desprovida de coerência, identidade e orgulho, a troca pela outra ou a fusão em uníssono, dando origem à outra coisa, é totalmente impossível! Tal faria surgir uma terceira que teria a agravante de não ser nem uma nem outra, coisa, claro!
Isso não está previsto nesta reflexão.
Não obstante reconheço a possibilidade de uma coisa, apesar de não ser outra, poder através de processos complexos e insuspeitos, tais como uma acção proveniente do exercício de um acto, se transformar em outra coisa!
No entanto, este primordial processo de criação carece de um desconhecimento inicial da outra coisa, a fim de prevenir a existência do dito terceiro.

Mas agora reparo que tal acção indicia pouca honestidade da minha parte...

Extraordinário!...Perante a necessidade de ultrapassar um obstáculo, não hesitei, coagi-me a manipular a realidade, ferindo de morte e desrespeitosamente aniquilando a outra coisa, transformando-a na coisa, com o propósito convicto de atingir o meu objectivo!...

Serei eu de confiança?... Hum!... Francamente!...

Se a honra, a honestidade, o respeito e os meus princípios tivessem peso suficiente no meu carácter, atrasaria o relógio o tempo suficiente para que de novo pudesse proceder à reflexão de um modo eticamente correcto e honesto!
Mas, não posso deixar de reparar que isso não basta. Apesar de ter regredido no tempo, não anulei o processo de reflexão anterior! Assim terei de lidar com uma reflexão contaminada pelas conclusões da que a antecedeu...
Isso muda completamente o desenrolar espontâneo e aleatório do processo, visto que, poderei não resistir, à tentação hipócrita, de tentar parecer muito correcto nos meus actos e reflexões devido à consciência da conotação que me adveio da anterior experiência!...
Pois bem! Serei desmascarado!...
Reparem, tal como a espontaneidade, a aleatoriedade não existe. Rapidamente todos constatarão que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Tela branca, alva, calva...


Tela...
Tela branca, alva, calva...
Apesar de habitualmente não pintar, tive urgência em fazê-lo! Numa corrida furtiva, fui a uma loja e comprei uma tela branca, três pastéis pretos, duas bisnagas de acrílico vermelho...umas espátulas e carvão...

Em casa, isto é, num local de improviso montei o cavalete e agarrei a tela. Olhei demoradamente para o vazio da tela até ela ficar completamente branca...mas não consegui...ao fechar os olhos consegui vê-la finalmente vazia e branca!

Demorei-me um pouco, pelo receio de que a alvura de novo fugisse. Já está. Agora é que vou conseguir desenhar...

A fraqueza!...

Os momentos que tenho privado com ela, fazem-me sentir-lhe as formas. Formas esguias, ovais de coragem esbatida e medo berrante... Formas sem margens, de definições muito marcadas que quase rasgariam a tela, vermelhos incolores de vergonha...ou antes timidez... Não, são mesmo é de medo!

Tiro a tela do cavalete e ponho-a em cima de uma mesa. Vai-me dar muito mais jeito...
Com o pastel e o carvão traço marcas de vida, com rombos, curvas e vértices redondos como espinhos de roseira. Depois com a mão esfrego até atingir grandes zonas de sombra. Biombos de cobardia!...

Agora com o acrílico vermelho, vou traçar-lhe grandes áreas de ousadia!... Isso mesmo, ousadia e uns bouquets de coragem!...

Coloco uma boa porção da pasta na tela...mas aqui não me dá jeito!

Ponho-a no chão. Com uma espátula em cada mão atiro-me na disposição de a mutilar avidamente. Os biombos e os cenários de sombras haveriam de sofrer a brutalidade da coragem e da força. Calculo-lhes as formas das mandíbulas e em movimentos precisos e calculados começo a dar-lhes formas...

A luta é renhida, as sombras estendem-se com pouco esforço abafando o escarlate. As espátulas ficam moles como tiras de papel pardo!...aquilo não me agrada nada, sinto-me muito pouco potente, não obstante da minha valentia, luto contra aqueles riscos de carvão que a minha mão já tinha esbatido, mas que me exibem os caninos exuberantes!...

Num acto quase descontrolado salto com os dois pés juntos para cima da tela...
Então afundo-me... Enquanto me afundo olho para a superfície e vejo, em imagens pouco focadas, os pasteis e o carvão, nas suas enormes casacas de golas peludas rindo!... Rindo em gargalhadas de desdém que mostram os seus pútridos dentes negros em bocas de dominação!...

© Mário Rodrigues - 2010

sábado, 24 de abril de 2010

Por favor, fiquem com um...São uma ternura!...

Fofos e indefesos. Nasceram com os corpos despidos de qualquer pêlo.
São um amor e uma ternura. Se pudesse, não faría isto.
Gostava imenso de ficar com todos mas a minha varanda tornou-se pequena.

Oferece-se ninhada de hipopótamos!


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...


"És bom para ir aos figos!... Quando for aos figos levo-te comigo!..."

Esta expressão leva-me a pensar de imediato, que estou a falar de alguém muito alto. Aparentemente, posso ser empurrado de supetão para verdades absolutas em redor de apanhar figos! Isto é muito precipitado da minha parte. Avançar sem uma observação e reflexão do desenrolar do acto, leva-me a tomar conclusões precipitadas!

Teremos de observar toda uma série de factores para que mais fidedigna seja a conclusão. Em primeiro lugar temos de ter a certeza de que se trata de uma figueira. Depois temos de...esperem...o universo de variáveis é muito pouco finito...é quase infinito! Teríamos de reflectir sobre a espécie da figueira, a altura da figueira, a disposição da figueira, o tipo de terreno, etc, etc...

Eu, na qualidade de...
Enfim, vou já decidir uma serie de coisas, mas só para facilitar. Penso que já tomastes consciência, de que se assim não fosse, o resultado poderia ser demasiadamente apurado, sendo que isso tinha como consequência um refinamento na caracterização que só deixaria espaço para uma situação em particular, o que não servia o intuito de abordar a generalidade da situação.

Assim, trata-se de uma figueira de S. João, daquelas que dá uns figos enormes castanhos. O outro indivíduo era alto, mais alto que eu, mas não o suficiente para apanhar os figos com os pés no chão, assim sem mais nada. Parece-me imperioso que a época do ano em que se desenrola a situação seja a época em que a figueira tem figos. Aliás, isso não basta. De toda a época em que a figueira tem figos, só menos de um quinto do tempo é que corresponde ao período em que os mesmos estão maduros, sendo que no restante espaço de tempo, seria pouco...era um bocado parvo, apanhar figos verdes só por causa de uma experiência que ainda por cima, nem sequer se está a desenrolar efectivamente, porque está a ser imaginada!
Ora se se está a imaginar uma coisa, convêm que se imagine uma coisa com algum préstimo!...
Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...
Podíamos partir do pressuposto de que aquela figueira ainda não tinha figos! Podia ter havido uma grande queda de granizo na altura da floração e isso teria destruído todas a possibilidade de nascerem figos!...
Mas penso que nunca vi flores nas figueiras!...
A menos que aquela figueira, não desse figos mas sim...nozes por exemplo que não se estragariam com o granizo!... E nascem de flores... Mas e se o granizo estragasse as flores nas nozes?
Bem, mas isso resolve-se já porque as flores das nozes tinham nascido na primavera e o granizo tinha caído antes. Garantindo assim que as flores intactas persistiriam. Também mando alguma coisa!...
Não! Não pode ser! Porque então não era uma figueira! Ou então seria uma árvore com folhas de figueira e frutos de nogueira, e isso não era muito vulgar!... Só faltava o tronco ser de freixo, para que a casca rugosa permitisse que os esquilos subissem lá acima para comer as nozes... Mas nunca ouvi dizer que, "...és tão alto que te levo às nozes!...". Para além disso se os esquilos as comessem, não faria qualquer sentido ir apanha-las. Muito menos com um amigo alto, porque teríamos de dividir as nozes que seriam muito poucas...e de certeza que ele não ia querer dividir ao meio a colheita visto que tinha sido ele a apanha-las...logo não seria meu amigo!
Mas se ele nem sequer sabia de nada, como é que ia querer das minhas nozes!
Claro que sabia porque eu lhe tinha dito! Ele ia tão calado na vida dele!...
Foi um pouco precipitado da minha parte, ter-lhe dito par ir comigo aos figos, se eu ainda nada sabia acerca da figueira em causa! E da qualidade e quantidade dos seus frutos! E da disposição do terreno, etc, etc...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 20 de abril de 2010

Paro cristalizado de pavor!


Uma epopeia!
Oh! Que epopeia!

A manhã tinha acordado enevoada...

"Março marçagão, manhãs de inverno e tardes de verão..."

Pois bem, a manhã estava enevoada. Gigantescas meias esferas abobadadas de água abundavam por aqueles lados. Campânulas hirtas expostas às forças colossais da brisa matinal, como cápsulas marcianas, espalhavam-se por montes e vales...

Orvalho!...

A área era vastíssima! A vista alcançava...a mais de quinze centímetros de distância apesar do ofuscado da nébula. Tinha acordado de mais uma interminável campanha das trevas. Renhidas lutas onde houve lugar a uma enorme quantidade de baixas nas nossas guerreiras...
Aquelas térmitas eram odiáveis!
Mas um dia...venceremos definitivamente! Esta guerra fará com que nós, dada a nossa supremacia de "Argentus", um dia as derrotemos em todo o seu gigantismo...

Apesar disso, a manhã estava calma. Por entre a nébula, um raio de sol destaca o amarelo intenso de uma flor. Junto ao seu pé, tomo consciência da sua colossal altura!...
Qual será a sabedoria acumulada de tal ser? Que envergadura!...
Extraordinário!...Todo o universo estaria à mercê de meus olhos se o cume das sua pétalas eu alcançasse!...

Mas...porque não subo? É certo que o enorme tronco não oferecia muita aderência, no entanto, com esforço consigo ir subindo. Alcanço um pouco mais. E mais. E mais...

Paro cristalizado de pavor! O barulho ensurdecedor e as vibrações tremem a terra e ficam cada vez mais próximas. Sinto toda a fúria do vento tentando arrancar-me do escorregadio tronco. Uma enorme abelha vem cobrar o seu tributo, nos estames polinizados. Agacho-me e esforço-me para não ser arrancado.

O sol começa a despontar e os seus raios a trespassarem-me o corpo. A escalada é penosa. Os meus olhos já alcançam aquele amarelo quase ofuscante. Mergulho num derradeiro esforço que me leva ao cume das amarelas pétalas...

Ah!...

Tenho muita dificuldade em...apreender o que os meus olhos vêem...

O Universo... é muito maior do que eu algum dia poderia pensar...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Então! Não sejais gananciosos...


Recordo-me dele! Recordo-me como se nunca, mais tivesse visto.
Tinha um aspecto de algum bom trato não obstante do seu gigantismo. Há muito acomodado a uma mesa muito pouco farta, ocupava um espaço muito grande...digamos que apoderara-se de espaço de outrem.
Servia-se de tudo o que estava na mesa e não só...
Tinha muitos braços tentaculados. Cada um desses braços tinha apêndices e prolongamentos. Alguns prolongamentos não viviam permanentemente junto dele, mas vinham com frequência juntar-se-lhe para que assim se tornasse mais injustamente eficaz na sua orgia de destruição de recursos.
Havia braços que tinham terminações e apêndices bizarros; chicotes finíssimos que cortavam dorsos vergados, lâminas de fio diamantado com que infligia cortes profundos e eternamente hemorrágicos, pontas de dedos indicadores que desnudavam a alma a quem apontavam, falos que penetravam incessantemente os violados que bradavam de dor bem como clitóricas e nojentas vaginas de um bando de vermes que o bajulavam.
Era temido e nunca respeitado.
A tristeza de esta não ser uma recordação como as outras...só uma recordação, deixa-me convicto de que o pretérito o não arrancou das nossas historias mas antes, qual intemporalidade, permanece ali...ali...ali!
O seu urro de soprano melado, qual castrati pseudo-angelical do século XIX, com intuito de se disfarçar, deixa ver numa transparência de tule negro a sua completa acefalia que contrasta com a também completa ambição de poder.
Os cantares, como se de sereias dos mares do Sul se tratasse, embriagam apêndices que até então o repudiam e negam. Pouco tempo depois, ávidos e de gosmas a escorrer pelos cantos das bocas dão vivas à degradante causa. Ele então, com um focinho ternurento de Hades arrependido diz no seu tom de Dom Corleone:

"Então! Não sejais gananciosos... Somos todos irmãos!..."

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quebrando correntes...


A discussão era enorme, quase ninguém se entendia, ou ninguém mesmo...as circunstâncias da morte daquele triângulo...teriam de ser muito bem explicadas!
"Já disse inúmeras vezes que nada tive a ver com a morte desse triângulo!"
"Então porque te disfarçaste?"
"Usar gel é um disfarce?"
"Claro que é! Assim todos te julgam um ponto final! Ocultando a tua verdadeira identidade de asterisco...!

Tratava-se de um triângulo já idoso, chutado de folha em folha. Os geómetras ignoravam-no compulsivamente, olhavam-no com asco e desprezo. Em tempos idos, vítima de um compasso comparador de corte, sofreu um rasgo que o privou definitivamente da sua beleza de isósceles. Transformou-o numa aberração que nada tinha de escaleno, dando-lhe como lado uma cicatriz em forma de arco que lhe alterou o ângulo. Ali, moribundo naquele estirador, esvaia-se em tinta-da-china. As feições desapareciam-lhe numa alvura que o esgotava e levava à transparência.

"Quadrado sou eu e afirmo aqui, arriscando-me a levar com um traço azul por cima, que é assim, é assim que os que lutam a vida inteira, trabalhando honradamente para esses senhores octógonos e dodecágonos, que se julgam donos do mundo e que nos exploram até ao último ponto das nossas linhas! É assim que depois terminamos..."

"Já cá faltava essa conversa! Claro!
Eu sou filho de uma base de uma pirâmide quadrangular e de um honrado triângulo recto. Tenho origens muito humildes e se hoje sou octógono lutei muito!
Já fui um quadrado que cresci a apanhar as borras das borrachas que espartanamente aniquilam os defeituosos pelas mãos do criador, essa omnipresença que nos castra, com a ajuda de ferramentas de martírio e tortura, essas senhoras réguas e esquadros que nos querem fazer todos iguais arrancando-nos o nosso direito de sermos diferentes, até conseguir com muito esforço e trabalho, unir pontos perdidos e endireitar restos de arcos mal apagados, para assim conseguir ir juntando uma e outra recta para ser pentágono e hexágino até ao que sou hoje!
E eu? Não trabalhei honradamente?"

"Quem pensas tu que és? Tenho tudo o que tu tens! Temos os mesmos direitos! Ou será que só porque não tenho ângulos nem rectas sou inferior? O meu pai era base de um cone! Pois era! E depois? Sou uma circunferência e tenho muito orgulho nisso!"

"Pois tens muito orgulho, mas já mais chegarás a esfera! Teremos que almejar algo mais além..."

"Quem me dera...Quem me dera, não sendo nada, ser uma representação gráfica de um pensamento de uma criança, cuja mão leve desloca um lápis pela folha branca, dando-me formas curvas e elípticas...como o esvoaçar de uma borboleta..."

"Cautelas! Cautelas que se aproximam os volumes. Agora é que se vão partir os bicos..."


Uma mão arrebanha a folha. Da discussão não nasceu muito. Apesar do covil do inferno estar logo ali, com as suas lâminas triturantes, o criador atira-a para o cesto dos papéis...
Uma criança que por ali andava, dela logo fez um aviãozinho que atirou pela janela, qual porta celestial...
Uma gota atinge o aviãozinho. Cai em cima do último ponto de tinta do nosso triângulo isósceles...

Oh! Que trinados de trompetes celestiais! Assim, sob a forma de borrão, ele renasce com um novo esplendor e completamente livre nas suas formas... Quebrando correntes...


© Mário Rodrigues - 2010

sábado, 3 de abril de 2010

Era uma cidade. Penso que o era...


Era uma cidade. Penso que o era. Não vi pessoas nas ruas, apenas um gato castanho e uma bola de couro que corriam à frente de duas crianças. Dois garotos vestidos com uma casaca castanha, uns calções e um boné...e calçavam umas botas até ao tornozelo. A cidade era esférica. Os prédios periféricos eram curvos, as ruas muito estreitas, tão estreitas que um dedo mindinho cortaria a passagem a um incauto transeunte. Era curiosa a maneira como escorriam as águas nas fontes; caiam das torneiras para o céu! Alias, agora que recordo, na porta de uma loja pendia na direcção dos astros uma placa que dizia "Joseph Smith & Nephew".
Os movimentos, naquela cidade, eram furtivos. As casas eram muito estreitas, quase do tamanho de caixas de fósforos. Erguiam-se muito alto e tinham telhados pontiagudos. No vértice de um cone terminava uma torre, que tinha uma altura impressionante, parecia um lápis, existia um cata-vento, um galo que girava sem parar...parecia...claro se a cidade é esférica, os ventos são circulares! No entanto, ele tinha a seus pés os quatro pontos cardeais! Onde estaria o Norte? Nor-Noroeste? Se ele girava sem cessar...
Escuta-se um trinado de máquinas de escrever a martelarem com os seus pequenos punções as folhas alvas de papel.
As coisas estão todas penduradas para cima! Reparo mais uma vez ao ver umas calças estendidas numa corda minúscula... O que terá acontecido à gravidade neste local? Terá um criador sido vitima de conspiração e na sequência dela mesma ter condenado injustamente esta cidade a uma gravidade inversa? Terá o cosmos invertido o sentido das forças físicas em mais um dos seus caprichos? O cosmos tem caprichos?

Esperem, reparo que toda a cidade está na realidade numa posição invertida! Claro, isso explica tudo! Assim as coisas fazem sentido.

Sinto-me emocionado com a grandeza e complexidade desta cidade. Não consigo, apesar do esforço, conter as lágrimas...elas brotam dos meus olhos sem respeito pelo meu constrangimento...elas brotam e escorem-me pela testa até pingarem dos fios do meu cabelo...

© Mário Rodrigues - 2010

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