Estava sinceramente agradado por, já à porta de casa, ter regredido um pouco e ter ido buscar o casaco. Era um casaco já bastante usado, cinza de uma malha polar "débil", mas que se tornara largo e confortável para os períodos em que estava a "hibernar" pelas proximidades de casa. Com as mãos nos bolsos, fecho éclair bem corrido até bem perto do pescoço, ia dando uns passos... Involuntariamente, ia atirando com um pé para a frente do outro, de modo que a cinética do tronco, não ultrapassasse perigosamente o eixo do centro de gravidade, o que em duas palavras, diria - caísse estatelado.
Ia a pensar em como seria difícil, não pensar em nada! Procurava uma inexistente possibilidade de conseguir não pensar em nada...
O passeio tinha cerca de dois metros de largura, ladeado do meu lado esquerdo por um muro, relativamente alto, com grandes zonas cobertas de hera, pedaços de reboco centenário prometendo a sua iminente queda, as pedras, as do passeio, pequenos cubos irregulares de calcário branco, estavam polidas e húmidas do intenso orvalho da noite. Este conjunto, muro e passeio, tinha a sua disposição aberta, coberta nas alturas pelas altas folhagens de vários carvalhos, tílias e castanheiros, na direcção do norte. O Sol nascera-me nas costas, garantindo uma húmida sombra na quase totalidade do dia.
Não obstante, um condenado, no dia em que sabe da sua sentença de morte, e possivelmente, depois da revolta, desejaria que a mesma fosse executada de imediato. Esse, deve ter a cabeça a explodir de tantos pensamentos. Uma boa parte da pena, senão mesmo a pior, é a tentativa inglória de querer por ordem hierárquica nos pensamentos e sentimentos nesses momentos. A dor do tempo que ainda falta, que possibilita a manutenção de tal inferno.
A abundância da humidade facultava a proliferação de um verdete, perigosamente escorregadio. Aquele "L" contínuo, composto pela união do muro com o passeio, prolongava-se no horizonte. Lá, bastante ao fundo, um feixe de raios de Sol, desciam a quarenta e cinco graus, antecipando a ainda tardia chegada do meio-dia e do sul, aproveitadores eficazes da interrupção do muro que fazia adivinhar um portão e de um céu com tendências a limpo adornado por cúmulos alvos e fofos.
Parado, a olhar para os cinco ou seis degraus que o levam ao cimo da plataforma da guilhotina ou da forca ou até mesmo do cepo do carrasco... Pensará ele - Já falta pouco!... Penso que o pânico o abraça. O ser humano tem por natureza, o sentimento de morte eminente. É um sistema de alarme extremo com vista a salvar a vida. Será controlável e manipulável? Não me parece, pelo facto de que é completamente involuntário. Não sei se o saco de pano negro na cabeça produzirá efeito! Aliás, acho que produz, mas qual? A cabeça, nessa ocasião estará vazia ou a velocidade e quantidade de sentimentos e pensamentos, provoca o colapso e paragem da consciência? Todos os sentidos estão em funcionamento, ainda, isso é certo! Com a cabeça pendente da espera da lâmina da guilhotina, escuta o destravamento da lâmina de, também quarenta e cinco, mas desta feita quilos e não graus... Curiosa esta coincidência!... Ambos os quadros, este e os raios de Sol, metamorfoseiam a vida e a morte!... Vai ouvindo o consequente silvo da descida da lâmina pelas corrediças. Parecerá ensurdecedor e eterno esse silvo? Não tenho a certeza que exista, nesse momento, alguma luta interior para contrariar a cena!... Possivelmente será um silvo de libertação. Finalmente!...
Com o olhar no chão, reparo agora que estou a caminhar, à razão de uns trinta passos por minuto, e com o olhar no chão! Estando eu a andar tão devagar, ainda estou com medo de tropeçar? Quando ando na correria no trabalho, não ando a olhar para o chão!... Mesmo porque se assim fosse, andava aos encontrões em toda a gente por os não ver!... E isso seria no mínimo constrangedor! Por que razão não vou a olhar em frente? Acho que isto, de quanto mais devagar ando, mais para baixo olho, já é uma imagem de marca. Sempre assim foi! Até já me chamaram uns "nomitos" por este meu hábito de andar com "os olhos no chão".
Fisiólogos e estudiosos da neurologia e da consciência afirmam que os neurónios funcionam e alimentam pensamentos, mesmo com a cabeça decepada, durante cinco segundos!... Como sabem eles dos cinco segundos? E se forem dez? Ou até mesmo trinta como chegam a defender alguns? Estará nessa ocasião a cabeça a não pensar em nada? Isso seria o derradeiro contra-senso!
Se, empiricamente, já cheguei à conclusão de que não se consegue não pensar em nada, em ultima análise porque isso em si, já é pensar em alguma coisa, como é que estando a cabeça em funcionamento não pensaria em nada? Parece-me claro que realmente pensa. Pensa o quê? Quais poderão ser os pensamentos de uma cabeça que acabou de ser decepada do resto do corpo há instantes?
Perdi a vida?
Já está? Finalmente?
Agora é que vai ser?
...
É!... Realmente é um portão. Enorme, forjado em ferro grosso e forte. O ferreiro foi muito sensível ao fazê-lo! Nota-se o detalhe e o esmero no trabalho! Das duas, três; ou ia receber boa maquia pelo trabalho, ou o nobre do palácio que estava por detrás deste portão era um bom homem querido por todos. Também poderia ser só rico pela força do trabalho escravo e do chicote!... Não, não era de certeza! Notava-se no forjado das cornucópias e dos caracóis, uma dedicação suave e meiga...se o contrário fosse, notar-se-ia a raiva e a brutalidade do ferro... O ferreiro, esse não o encobriria!...
© Mário Rodrigues - 2010
Ja tinha saudades das suas reflexoes tao carregadinhas de saber e de sentir. Nao faz mal ficar ausente, se sempre que voltar trouxer coisas tao interessantes de ler. Os seus pensamentos partilhados educam-me e fazem-me sentir igual.
ResponderEliminarEsses cinco segundos parecem-me o maior pesadelo possível...
ainda nunca parei para pensar se sou a favor ou contra como me sentiria se sentiria alguma coisa. todavia... devíamos trabalhar a vida como o ferreiro trabalha o ferro.
ResponderEliminarque prazer em ler-te, realmente.
Andou fugido... já tinha saudades!!
ResponderEliminarSublime como sempre!!
Beijinho
Meninas!...
ResponderEliminarEstragam-me com mimos ;-))))
Beijos
Um pouco longo, mas gostei Mário.
ResponderEliminarGostei de ler mais uma vez este conjunto de narrativas. São escritas com simplicidade mas expressam sentimentos e significados.
ResponderEliminarCecília Abreu
Olá Cecília,
ResponderEliminarMuito obrigado pela visita! Este recanto está sempre dispor de quem por bem vem...
Um beijo