segunda-feira, 10 de março de 2025

Vivemos numa democracia disponível para o eterno regresso do fascismo?



O Esgotamento do Modelo Liberal-Democrático no Ocidente

Nas décadas finais do século XX, especialmente após o fim da Guerra Fria, o modelo liberal-democrático consolidou-se como a forma política hegemónica no Ocidente. Alguns teóricos chegaram a argumentar que a evolução histórica teria alcançado seu ápice nesse modelo: Francis Fukuyama, por exemplo, proclamou o “fim da história”, ou seja, a vitória da democracia liberal como forma final de governo humano e a “completa exaustão de alternativas sistemáticas viáveis ao liberalismo ocidental” [1]. No entanto, o optimismo do início dos anos 1990 deu lugar, nas décadas seguintes, a sinais de crise nesse modelo. Líderes autoritários em potências como a China e a Rússia continuaram a desafiar a ideia de que a liberal-democracia seria universal, enquanto dentro de democracias ocidentais emergiram movimentos e governantes populistas que contestam abertamente pilares liberais como o pluralismo, o Estado de direito e os limites institucionais ao poder [1].

Os sintomas de esgotamento do modelo liberal-democrático tornaram-se evidentes em diversos indicadores políticos. Em muitas democracias ocidentais, observou-se uma queda na participação eleitoral e na confiança dos cidadãos nas instituições representativas. O sistema partidário tradicional fragmentou-se com a ascensão de forças políticas anti‐establishment, e o eleitorado tornou-se mais volátil. Essas tendências levaram alguns analistas a falar em uma “recessão democrática” global. De fato, relatórios internacionais apontam um declínio consistente nos padrões de liberdade e democracia: segundo a organização Freedom House, 2023 marcou o décimo sétimo ano consecutivo de queda na liberdade global [2]. Por quase duas décadas, mais países registaram retrocessos do que avanços em direitos políticos e liberdades civis, sugerindo uma erosão geral dos valores liberal-democráticos.

Analistas apontam diversos factores estruturais e conjunturais para explicar o esgotamento do modelo liberal-democrático ocidental. Um dos elementos centrais é a crescente desconexão entre governantes e governados. Nas últimas décadas, consolidou-se uma percepção de “crise de representatividade”: os cidadãos sentem-se distantes das elites políticas, a quem acusam de atender mais aos próprios interesses e aos de grupos económicos do que às demandas do povo. Manuel Castells descreve esse fenómeno como uma ruptura profunda na relação de confiança que sustentava o sistema, levando a um colapso gradual do modelo tradicional de representação política [3]. Escândalos de corrupção e políticas que favoreceram instituições financeiras em detrimento do bem-estar social agravaram essa ruptura. Por exemplo, bancos em dificuldades foram resgatados com fundos públicos após a crise financeira de 2008, enquanto serviços básicos para a população sofreram cortes – alimentando um sentimento generalizado de injustiça [3]. Esse descontentamento transbordou em protestos populares massivos (como ocupações de praças e movimentos de indignados), muitas vezes reprimidos com violência pelas autoridades, o que evidenciou uma crise de legitimidade: não da ideia de democracia em si, mas do modelo liberal-democrático tal como aplicado nas últimas décadas [3].

Outro factor-chave refere-se às transformações económicas e ideológicas ocorridas no contexto da globalização neoliberal. A expansão global do capitalismo desregulado limitou a capacidade dos Estados nacionais de controlarem os rumos da economia e atenuarem desigualdades dentro de suas fronteiras. O paradigma neoliberal, com a privatização de funções do Estado, a financeirização da economia e a erosão de mecanismos de solidariedade social, enfraqueceu pilares que sustentavam a democracia no pós-guerra. Wendy Brown argumenta que, nas últimas décadas, o neoliberalismo corroeu o tecido social e os valores democráticos, transformando os cidadãos em indivíduos atomizados e abrindo espaço para a ascensão de forças explicitamente antidemocráticas [4]. De facto, assistiu-se ao surgimento, no interior de democracias liberais, de valores e movimentos antes marginalizados ou mesmo antagónicos aos princípios liberais: um novo nacionalismo xenófobo, conservadorismo religioso fundamentalista, retórica racista e um ressurgimento de ideias antiliberais. Essas correntes desafiam directamente os compromissos com direitos universais e tolerância que caracterizam a democracia liberal, acentuando sua crise de legitimidade.

A deterioração das condições socioeconómicas e da confiança institucional forneceu terreno fértil para líderes e movimentos que prometem soluções autoritárias ou antiliberais. Em diversos países ocidentais, emergiram governos eleitos que, uma vez no poder, enfraquecem deliberadamente os freios e contrapesos democráticos. Verifica-se assim o fenómeno da chamada “democracia iliberal”, em que eleições continuam a ocorrer, porém direitos fundamentais, liberdades de minorias e a independência do poder judiciário são abertamente atacados. Hungria e Polónia, por exemplo, adoptaram reformas que limitam a liberdade de imprensa e a autonomia das cortes, consolidando um poder majoritário pouco constrangido por normas liberais. Esse cenário reflecte aquilo que Yascha Mounk caracteriza como uma “democracia sem direitos” – ou seja, regimes em que a vontade da maioria é exercida sem respeito às salvaguardas liberais clássicas [5]. Por outro lado, Mounk adverte também contra o risco oposto de se ter “direitos sem democracia”, quando instituições tecnocráticas e elites não eleitas passam a tomar decisões à revelia da vontade popular, esvaziando o conteúdo democrático do regime [5]. Ambos os processos – o avanço de maiorias iliberais e a desconexão entre representantes e representados – contribuem para minar os dois pilares gémeos que definem a ordem liberal-democrática.

O renascimento de movimentos nacionalistas e de extrema-direita no Ocidente é outra consequência visível da crise do modelo actual. Discursos anti-imigração, autoritarismo e saudosismo de uma ordem “tradicional” ganharam tracção em sociedades que antes se julgavam imunizadas contra tais tendências. Analistas como Enzo Traverso apontam paralelos entre esses fenómenos contemporâneos e os do entre guerras no século XX, identificando nas correntes populistas actuais “novas faces do fascismo”, adaptadas ao contexto do século XXI [6]. Embora as circunstâncias históricas sejam distintas, o apelo a líderes “fortes”, o desprezo pelo liberalismo cosmopolita e a disposição para sacrificar liberdades em nome de uma suposta segurança ou identidade nacional ecoam padrões já vistos em épocas de ruptura democrática. Tais tendências acendem um alerta quanto à resiliência das democracias ocidentais: direitos e garantias que pareciam consolidados após 1945 mostram-se mais vulneráveis do que se presumia.

Além disso, difunde-se um clima de cepticismo em relação à própria ideia de democracia liberal. Sectores das elites económicas e intelectuais, assim como parcelas desencantadas da população, passaram a questionar o valor do regime democrático quando este não atende às suas expectativas. Por vezes, desenvolve-se mesmo uma retórica de desprezo pelos princípios democráticos – algo que o filósofo Jacques Rancière denominou “ódio à democracia” [7]. Esse ressentimento manifesta-se na culpabilização da participação popular pelas disfunções do sistema e na defesa velada de soluções abertamente autoritárias ou elitistas. Desafios globais complexos, como crises migratórias, pandemias e mudanças climáticas, também têm servido de pretexto para a concentração de poder em líderes “fortes” e para a relativização de liberdades civis, sob o argumento da eficiência – aprofundando o dilema entre segurança e liberdade já presente nas sociedades liberais.

Os desenvolvimentos das últimas décadas indicam um claro esgotamento do ímpeto que outrora impulsionou o modelo liberal-democrático no Ocidente. As promessas de paz, prosperidade e liberdade associadas a esse modelo – triunfante após a Guerra Fria – cederam lugar a uma realidade de frustração popular, polarização política e retrocessos institucionais. Não se trata de declarar o fim da democracia em si, mas de reconhecer que o arranjo liberal-democrático estabelecido no pós-guerra parece ter atingido os seus limites, enfrentando desafios que não consegue resolver com as fórmulas tradicionais. Coloca-se, assim, a questão de saber se as democracias ocidentais serão capazes de se renovar e enfrentar esses desafios – por meio de reformas que tornem o sistema mais inclusivo, responsável e resiliente – ou se assistirão passivamente à emergência de modelos pós-liberais de governo. Em outras palavras, o esgotamento actual pode ser o prelúdio de uma transformação democrática revitalizadora, ou o passo inicial rumo a uma era pós-democrática no coração do Ocidente. A história ainda está em aberto, e a defesa dos valores de liberdade e igualdade exigirá um esforço consciente para reverter a crise e reinventar a democracia para o século XXI.


Bibliografia

1. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

2. GAUVIN, Olivia. Freedom House reports “global freedom decline” for 19th consecutive year. Democracy Without Borders, 28 fev. 2025.

3. CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

4. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

5. MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

6. TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Londres: Verso, 2019.

7. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.


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…Escrevo, principalmente, por falta de espaço dentro de mim para tantas emoções e tão grandes, para mim. Nos comentários, fico com a sensação de que os pingos de emoção que transbordo, caiem em "terras fecundas" e coadjuvam o nascimento de novas emoções, produzem opiniões, contra pontos e desafios… E isso, isso é “geleia real”, para as nossas vidas…

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