O Tempo, o Homem e a Mancha na Parede
O tempo não era problema. Ele estava lá, insensível, deslizando por entre os dias e as noites como uma névoa que se infiltra pelas frinchas das portas. O problema era o homem.
Naquela casa antiga, onde o soalho rangia queixas de madeira envelhecida, havia uma mancha na parede. Não era uma mancha qualquer. Começara tímida, um tom levemente mais escuro, quase imperceptível. Mas os anos passaram e ela foi alastrando, desenhando formas indecifráveis que ora pareciam mapas de terras distantes, ora rostos deformados pelo acaso.
Durante anos, o homem olhou para a mancha como quem olha para um relógio parado. "O tempo resolve", pensava. Mas o tempo não resolveu. O tempo fez crescer a mancha. Fez dela um monumento à sua própria inércia.
Houve um dia em que a sua mulher, cansada do silêncio cúmplice entre os dois, apontou directamente:
— Não aguentas mais olhar para isso?
Ele suspirou.
— O tempo vai dar conta dela.
Ela riu. Não era riso de graça, era riso de desespero, de quem já não tinha paciência para o ouvir.
— O tempo!? O tempo só deu conta de ti! Olha-te, encolhido, esperando que as coisas se resolvam sozinhas. Se queres que a mancha desapareça, pega numa trincha e pinta-a!
Ele não respondeu. A mulher virou costas, exausta, e deixou-o com a sua parede, a sua mancha, o seu tempo.
Mas naquela noite, pela primeira vez, o homem encarou a verdade. O tempo não resolveria. O tempo apenas arrastava consigo o peso dos dias. Se a mancha fosse para desaparecer, não seria o tempo, mas ele próprio, a ter de fazê-lo.
Na manhã seguinte, abriu a lata de tinta e cobriu a parede.
E, pela primeira vez em anos, sentiu-se vivo.
© Mário Rodrigues - 2025
Sem comentários:
Enviar um comentário
…Escrevo, principalmente, por falta de espaço dentro de mim para tantas emoções e tão grandes, para mim. Nos comentários, fico com a sensação de que os pingos de emoção que transbordo, caiem em "terras fecundas" e coadjuvam o nascimento de novas emoções, produzem opiniões, contra pontos e desafios… E isso, isso é “geleia real”, para as nossas vidas…