terça-feira, 11 de março de 2025

Loison, "O Maneta"



Era uma vez um general francês que tinha tudo para ser um cavalheiro, excepto a educação, a compaixão e, bem, um dos braços. Louis Henri Loison, carinhosamente apelidado de "o Maneta" – porque para massacrar e saquear bastava-lhe uma mão – entrou em Portugal como um furacão, mas daqueles que não trazem vento, só deixam o cheiro a enxofre e um rasto de destruição comparável a uma tourada numa loja de porcelana.

A sua missão? Conquistar, impor a ordem e civilizar os portugueses. O problema? Ele confundiu "civilizar" com "esventrar" e "impor a ordem" com "deixar um rasto de corpos onde quer que passasse". De facto, a sua passagem por Évora foi tão memorável que até hoje os fantasmas locais ainda acordam a meio da noite aos gritos de "Lá vem o Maneta!".

E que dizer do requinte com que exerceu a sua profissão? Loison não era um simples brutamontes que matava por matar – nada disso. Ele fazia-o com um certo entusiasmo artístico, como quem desenha uma paisagem a sangue e fogo. Para ele, cada aldeia saqueada era um quadro impressionista, cada degolado um detalhe cuidadosamente colocado para reforçar a composição.

Os portugueses, sempre práticos, cedo perceberam que quando algo desaparecia, fosse um porco, um carro de bois ou uma vida humana, havia apenas uma explicação possível: "Foi tudo para o Maneta". E assim nasceu a expressão que ainda hoje se usa quando qualquer coisa se perde ou se estraga sem retorno. Porque, verdade seja dita, Loison tinha uma capacidade ímpar para transformar cidades prósperas em pilhas de entulho e habitantes felizes em cadáveres precocemente reformados.

Mas como tudo na vida, até a festa dos tiranos tem um fim. Com os ingleses de um lado e os resistentes portugueses do outro, o Maneta começou a perceber que talvez o seu espectáculo de horrores não fosse assim tão apreciado. Foi recuando, desonrado, desaplaudido, sem sequer ter direito a um "encore". Saiu de Portugal sem glória, sem honra e – pasme-se! – sem nada para pilhar. Ironia das ironias, foi tudo para o Maneta... menos para ele.

E assim terminou a epopeia de Louis Henri Loison, o homem que pensou que podia roubar um país inteiro, mas acabou reduzido a uma nota de rodapé. A História tem destas coisas: às vezes os monstros são lembrados, mas outras vezes... são apenas um maneta que passou.


© Mário Rodrigues - 2025

Só há dois tipos de problemas, os que o tempo resolve e os que nem o tempo resolve!

 

O Tempo, o Homem e a Mancha na Parede



O tempo não era problema. Ele estava lá, insensível, deslizando por entre os dias e as noites como uma névoa que se infiltra pelas frinchas das portas. O problema era o homem.

Naquela casa antiga, onde o soalho rangia queixas de madeira envelhecida, havia uma mancha na parede. Não era uma mancha qualquer. Começara tímida, um tom levemente mais escuro, quase imperceptível. Mas os anos passaram e ela foi alastrando, desenhando formas indecifráveis que ora pareciam mapas de terras distantes, ora rostos deformados pelo acaso.

Durante anos, o homem olhou para a mancha como quem olha para um relógio parado. "O tempo resolve", pensava. Mas o tempo não resolveu. O tempo fez crescer a mancha. Fez dela um monumento à sua própria inércia.

Houve um dia em que a sua mulher, cansada do silêncio cúmplice entre os dois, apontou directamente:
— Não aguentas mais olhar para isso?

Ele suspirou.
— O tempo vai dar conta dela.

Ela riu. Não era riso de graça, era riso de desespero, de quem já não tinha paciência para o ouvir.
— O tempo!? O tempo só deu conta de ti! Olha-te, encolhido, esperando que as coisas se resolvam sozinhas. Se queres que a mancha desapareça, pega numa trincha e pinta-a!

Ele não respondeu. A mulher virou costas, exausta, e deixou-o com a sua parede, a sua mancha, o seu tempo.

Mas naquela noite, pela primeira vez, o homem encarou a verdade. O tempo não resolveria. O tempo apenas arrastava consigo o peso dos dias. Se a mancha fosse para desaparecer, não seria o tempo, mas ele próprio, a ter de fazê-lo.

Na manhã seguinte, abriu a lata de tinta e cobriu a parede.

E, pela primeira vez em anos, sentiu-se vivo.


© Mário Rodrigues - 2025

segunda-feira, 10 de março de 2025

Vivemos numa democracia disponível para o eterno regresso do fascismo?



O Esgotamento do Modelo Liberal-Democrático no Ocidente

Nas décadas finais do século XX, especialmente após o fim da Guerra Fria, o modelo liberal-democrático consolidou-se como a forma política hegemónica no Ocidente. Alguns teóricos chegaram a argumentar que a evolução histórica teria alcançado seu ápice nesse modelo: Francis Fukuyama, por exemplo, proclamou o “fim da história”, ou seja, a vitória da democracia liberal como forma final de governo humano e a “completa exaustão de alternativas sistemáticas viáveis ao liberalismo ocidental” [1]. No entanto, o optimismo do início dos anos 1990 deu lugar, nas décadas seguintes, a sinais de crise nesse modelo. Líderes autoritários em potências como a China e a Rússia continuaram a desafiar a ideia de que a liberal-democracia seria universal, enquanto dentro de democracias ocidentais emergiram movimentos e governantes populistas que contestam abertamente pilares liberais como o pluralismo, o Estado de direito e os limites institucionais ao poder [1].

Os sintomas de esgotamento do modelo liberal-democrático tornaram-se evidentes em diversos indicadores políticos. Em muitas democracias ocidentais, observou-se uma queda na participação eleitoral e na confiança dos cidadãos nas instituições representativas. O sistema partidário tradicional fragmentou-se com a ascensão de forças políticas anti‐establishment, e o eleitorado tornou-se mais volátil. Essas tendências levaram alguns analistas a falar em uma “recessão democrática” global. De fato, relatórios internacionais apontam um declínio consistente nos padrões de liberdade e democracia: segundo a organização Freedom House, 2023 marcou o décimo sétimo ano consecutivo de queda na liberdade global [2]. Por quase duas décadas, mais países registaram retrocessos do que avanços em direitos políticos e liberdades civis, sugerindo uma erosão geral dos valores liberal-democráticos.

Analistas apontam diversos factores estruturais e conjunturais para explicar o esgotamento do modelo liberal-democrático ocidental. Um dos elementos centrais é a crescente desconexão entre governantes e governados. Nas últimas décadas, consolidou-se uma percepção de “crise de representatividade”: os cidadãos sentem-se distantes das elites políticas, a quem acusam de atender mais aos próprios interesses e aos de grupos económicos do que às demandas do povo. Manuel Castells descreve esse fenómeno como uma ruptura profunda na relação de confiança que sustentava o sistema, levando a um colapso gradual do modelo tradicional de representação política [3]. Escândalos de corrupção e políticas que favoreceram instituições financeiras em detrimento do bem-estar social agravaram essa ruptura. Por exemplo, bancos em dificuldades foram resgatados com fundos públicos após a crise financeira de 2008, enquanto serviços básicos para a população sofreram cortes – alimentando um sentimento generalizado de injustiça [3]. Esse descontentamento transbordou em protestos populares massivos (como ocupações de praças e movimentos de indignados), muitas vezes reprimidos com violência pelas autoridades, o que evidenciou uma crise de legitimidade: não da ideia de democracia em si, mas do modelo liberal-democrático tal como aplicado nas últimas décadas [3].

Outro factor-chave refere-se às transformações económicas e ideológicas ocorridas no contexto da globalização neoliberal. A expansão global do capitalismo desregulado limitou a capacidade dos Estados nacionais de controlarem os rumos da economia e atenuarem desigualdades dentro de suas fronteiras. O paradigma neoliberal, com a privatização de funções do Estado, a financeirização da economia e a erosão de mecanismos de solidariedade social, enfraqueceu pilares que sustentavam a democracia no pós-guerra. Wendy Brown argumenta que, nas últimas décadas, o neoliberalismo corroeu o tecido social e os valores democráticos, transformando os cidadãos em indivíduos atomizados e abrindo espaço para a ascensão de forças explicitamente antidemocráticas [4]. De facto, assistiu-se ao surgimento, no interior de democracias liberais, de valores e movimentos antes marginalizados ou mesmo antagónicos aos princípios liberais: um novo nacionalismo xenófobo, conservadorismo religioso fundamentalista, retórica racista e um ressurgimento de ideias antiliberais. Essas correntes desafiam directamente os compromissos com direitos universais e tolerância que caracterizam a democracia liberal, acentuando sua crise de legitimidade.

A deterioração das condições socioeconómicas e da confiança institucional forneceu terreno fértil para líderes e movimentos que prometem soluções autoritárias ou antiliberais. Em diversos países ocidentais, emergiram governos eleitos que, uma vez no poder, enfraquecem deliberadamente os freios e contrapesos democráticos. Verifica-se assim o fenómeno da chamada “democracia iliberal”, em que eleições continuam a ocorrer, porém direitos fundamentais, liberdades de minorias e a independência do poder judiciário são abertamente atacados. Hungria e Polónia, por exemplo, adoptaram reformas que limitam a liberdade de imprensa e a autonomia das cortes, consolidando um poder majoritário pouco constrangido por normas liberais. Esse cenário reflecte aquilo que Yascha Mounk caracteriza como uma “democracia sem direitos” – ou seja, regimes em que a vontade da maioria é exercida sem respeito às salvaguardas liberais clássicas [5]. Por outro lado, Mounk adverte também contra o risco oposto de se ter “direitos sem democracia”, quando instituições tecnocráticas e elites não eleitas passam a tomar decisões à revelia da vontade popular, esvaziando o conteúdo democrático do regime [5]. Ambos os processos – o avanço de maiorias iliberais e a desconexão entre representantes e representados – contribuem para minar os dois pilares gémeos que definem a ordem liberal-democrática.

O renascimento de movimentos nacionalistas e de extrema-direita no Ocidente é outra consequência visível da crise do modelo actual. Discursos anti-imigração, autoritarismo e saudosismo de uma ordem “tradicional” ganharam tracção em sociedades que antes se julgavam imunizadas contra tais tendências. Analistas como Enzo Traverso apontam paralelos entre esses fenómenos contemporâneos e os do entre guerras no século XX, identificando nas correntes populistas actuais “novas faces do fascismo”, adaptadas ao contexto do século XXI [6]. Embora as circunstâncias históricas sejam distintas, o apelo a líderes “fortes”, o desprezo pelo liberalismo cosmopolita e a disposição para sacrificar liberdades em nome de uma suposta segurança ou identidade nacional ecoam padrões já vistos em épocas de ruptura democrática. Tais tendências acendem um alerta quanto à resiliência das democracias ocidentais: direitos e garantias que pareciam consolidados após 1945 mostram-se mais vulneráveis do que se presumia.

Além disso, difunde-se um clima de cepticismo em relação à própria ideia de democracia liberal. Sectores das elites económicas e intelectuais, assim como parcelas desencantadas da população, passaram a questionar o valor do regime democrático quando este não atende às suas expectativas. Por vezes, desenvolve-se mesmo uma retórica de desprezo pelos princípios democráticos – algo que o filósofo Jacques Rancière denominou “ódio à democracia” [7]. Esse ressentimento manifesta-se na culpabilização da participação popular pelas disfunções do sistema e na defesa velada de soluções abertamente autoritárias ou elitistas. Desafios globais complexos, como crises migratórias, pandemias e mudanças climáticas, também têm servido de pretexto para a concentração de poder em líderes “fortes” e para a relativização de liberdades civis, sob o argumento da eficiência – aprofundando o dilema entre segurança e liberdade já presente nas sociedades liberais.

Os desenvolvimentos das últimas décadas indicam um claro esgotamento do ímpeto que outrora impulsionou o modelo liberal-democrático no Ocidente. As promessas de paz, prosperidade e liberdade associadas a esse modelo – triunfante após a Guerra Fria – cederam lugar a uma realidade de frustração popular, polarização política e retrocessos institucionais. Não se trata de declarar o fim da democracia em si, mas de reconhecer que o arranjo liberal-democrático estabelecido no pós-guerra parece ter atingido os seus limites, enfrentando desafios que não consegue resolver com as fórmulas tradicionais. Coloca-se, assim, a questão de saber se as democracias ocidentais serão capazes de se renovar e enfrentar esses desafios – por meio de reformas que tornem o sistema mais inclusivo, responsável e resiliente – ou se assistirão passivamente à emergência de modelos pós-liberais de governo. Em outras palavras, o esgotamento actual pode ser o prelúdio de uma transformação democrática revitalizadora, ou o passo inicial rumo a uma era pós-democrática no coração do Ocidente. A história ainda está em aberto, e a defesa dos valores de liberdade e igualdade exigirá um esforço consciente para reverter a crise e reinventar a democracia para o século XXI.


Bibliografia

1. FUKUYAMA, Francis. O fim da história e o último homem. Rio de Janeiro: Rocco, 1992.

2. GAUVIN, Olivia. Freedom House reports “global freedom decline” for 19th consecutive year. Democracy Without Borders, 28 fev. 2025.

3. CASTELLS, Manuel. Ruptura: A crise da democracia liberal. Rio de Janeiro: Zahar, 2018.

4. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no Ocidente. São Paulo: Politeia, 2019.

5. MOUNK, Yascha. O povo contra a democracia. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

6. TRAVERSO, Enzo. The New Faces of Fascism: Populism and the Far Right. Londres: Verso, 2019.

7. RANCIÈRE, Jacques. O ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2014.


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