A história, como tantas vezes é contada, tem o vício de escolher os seus protagonistas e de reduzir o resto a figurantes. A narrativa escolar, eurocêntrica e simplificadora, repete como um refrão: a Europa mergulhou na Idade Média, viveu na escuridão e depois, como por milagre, renasceu. Galileu, Copérnico, Leonardo, Newton, eis os heróis que iluminam os manuais. Mas o que se omite, quase sempre, é que essa luz teve combustível oriental. O chamado “ouro da ciência” do mundo islâmico foi o ventre onde se incubaram muitos dos conhecimentos que, mais tarde, a Europa reivindicou como seus.
Este ensaio é um gesto de restituição. Não para negar os méritos europeus, mas para os situar no seu verdadeiro contexto: sem Bagdade, sem Córdoba, sem Cairo, o Renascimento europeu teria sido, no mínimo, diferente. É preciso resgatar esta verdade para que o mapa da história deixe de ser um desenho mutilado.
I. O vazio deixado por Roma
Quando o Império Romano do Ocidente caiu em 476 d.C., deixou atrás de si ruínas e fragmentação. As estradas, os aquedutos, os exércitos desapareceram; o comércio internacional reduziu-se a trocas locais. A alfabetização caiu vertiginosamente: fora do clero, poucos sabiam ler. A Europa ruralizou-se, e com ela, o pensamento encolheu.
Os mosteiros preservaram fragmentos da cultura clássica, copiando manuscritos de Aristóteles, Cícero, Virgílio. Mas esse saber ficou enclausurado em latim e em claustros. O povo, que pouco sabia ler, não tinha acesso a esse património. A curiosidade intelectual era sufocada por uma Igreja que temia heresias mais do que ignorância. Durante séculos, a Europa esteve mais ocupada com cruzadas, pestes e inquisições do que com o avanço da ciência.
É neste vácuo que outro mundo se ergue…
II. O nascimento de um império do saber
Com Maomé (séc. VII) nasce o Islão, e em poucas décadas, as suas comunidades expandem-se da Península Arábica até à Península Ibérica. Mas não foi apenas um império político. Os califados omíada e abássida entenderam que a fé precisava de raízes intelectuais. Bagdade, fundada em 762, tornou-se capital do saber.
Ali nasceu a famosa Casa da Sabedoria (Bayt al-Hikma). Nela, estudiosos muçulmanos, cristãos e judeus traduziam para árabe os textos de Aristóteles, Galeno, Euclides, Ptolomeu, bem como tratados indianos de matemática e medicina. Não se limitavam a copiar: comentavam, corrigiam, ampliavam.
Enquanto a Europa mal mantinha bibliotecas com alguns milhares de volumes, Bagdade tinha centenas de milhares. Era uma cidade onde se estudava astronomia com observatórios, onde se discutia filosofia nas mesquitas, onde a medicina florescia em hospitais abertos a todos.
III. Córdoba e Cairo: os outros faróis
Na Península Ibérica, o califado de Córdoba (séc. X) rivalizava em esplendor. A cidade contava com ruas pavimentadas, iluminação pública e bibliotecas que albergavam centenas de milhares de manuscritos. Ali, Averróis comentava Aristóteles e defendia a primazia da razão, influenciando decisivamente a filosofia europeia.
No Cairo, sob os fatímidas e aiúbidas, a medicina avançava. Hospitais públicos funcionavam com base em métodos racionais de diagnóstico e tratamento. Farmacopeias descreviam centenas de substâncias. A astronomia era estudada em observatórios, e a matemática servia tanto para calcular impostos como para medir os céus.
IV. O ouro da ciência islâmica
Matemática: Al-Khwarizmi (séc. IX) escreveu o Livro da Restauração e do Balanceamento, origem da palavra “álgebra” (al-jabr). Foi também de onde veio a palavra “algoritmo”. Os números que usamos, o 0, 1, 2, 3… chegaram à Europa através dos árabes, herança da Índia.
Astronomia: Observatórios como os de Maraga e Samarcanda criaram tabelas muito mais precisas do que as de Ptolomeu. Descobertas sobre o movimento dos planetas foram depois utilizadas por Copérnico.
Medicina: Avicena (Ibn Sina) escreveu o Cânone da Medicina, usado nas universidades europeias até ao século XVII. Descreveu doenças, sintomas e tratamentos de forma sistemática. Cirurgiões islâmicos praticavam operações de catarata e desenvolviam anestésicos rudimentares.
Óptica: Alhazen (Ibn al-Haytham) demonstrou que a luz entra no olho e não sai dele, como pensava Ptolomeu. O seu método experimental foi precursor do que hoje chamamos “método científico”.
Filosofia: Averróis (Ibn Rushd), em Córdoba, defendeu a compatibilidade entre fé e razão, e a autonomia da filosofia. As suas traduções e comentários de Aristóteles moldaram a escolástica europeia.
V. O declínio e as causas
Este florescimento não foi eterno. A partir do séc. XIII, a invasão mongol devastou Bagdade (1258). Bibliotecas arderam, centros de saber desapareceram. Ao mesmo tempo, a fragmentação política e o avanço de correntes religiosas mais conservadoras foram travando o ímpeto da investigação livre. O comércio global começou a mudar: a Europa explorava o Atlântico e o Índico, deslocando o eixo do mundo.
Mas o ouro estava lançado. Os livros árabes circularam para a Europa através da Península Ibérica e da Sicília. Universidades em Paris, Bolonha e Coimbra estudavam Avicena em medicina, Averróis em filosofia, Alhazen em óptica. Sem esse legado, não haveria Tomás de Aquino, não haveria Copérnico, não haveria Galileu.
VI. O mito da Europa auto-suficiente
A historiografia tradicional pinta o Renascimento como uma faísca espontânea na Europa. Mas a verdade é que foi um reencontro com a Antiguidade através da mediação islâmica. A Europa não teria renascido sem o Oriente. Foi aluna antes de se tornar mestra.
Esquecer este detalhe é perpetuar uma mentira conveniente: a de que “o resto do mundo era paisagem”. Não era. Enquanto a Europa se entretinha com cruzadas e pestes, o mundo islâmico estudava, experimentava e escrevia. E foi esse saber que depois alimentou o renascimento europeu.
VII. O eco no presente
Lembrar este ouro da ciência é também um gesto político: recusar o discurso fácil que associa o Islão apenas a atraso ou fundamentalismo. Houve um tempo em que o mundo muçulmano foi farol do saber, e em que a Europa lhe deveu a sobrevivência da sua própria memória intelectual.
Hoje, quando falamos de diálogo de civilizações, talvez seja bom lembrar que já houve um: feito de traduções, de manuscritos, de ideias partilhadas. Não é romantismo, é história.
VIII. Conclusão: devolver o crédito
O Renascimento europeu foi, sim, um marco. Mas foi também herança. Copérnico via mais longe porque Alhazen já tinha olhado o céu. Newton calculava porque Al-Khwarizmi lhe dera os números. Tomás de Aquino pensava porque Averróis traduzira Aristóteles. Avicena ensinava médicos europeus séculos após a sua morte.
O ouro da ciência islâmica não é um rodapé. É capítulo fundador. Sem ele, a Europa teria renascido mais tarde, de outra forma, talvez nunca. E é preciso dizer isto com clareza, sem enviesamentos: a história não é monopólio de uma geografia. É uma rede. E o seu tecido tem fios árabes, persas, indianos, que nos sustentam até hoje.
Nota de autoria: Este texto contou com o apoio de uma ferramenta de inteligência artificial para a análise bibliográfica. Tal como contou com o uso de um teclado, energia elétrica, óculos com lentes de inspiração óptica e invenções tão prosaicas quanto a roda e o fogo. Todas ferramentas alheias, sem as quais não poderia escrever. A responsabilidade, no entanto, é inteiramente minha, em continuidade com a voz que reconheço nos meus textos.