sábado, 6 de setembro de 2025

O Renascimento Científico e a Revolução Científica (séculos XVI e XVII) - Quando a Humanidade Decidiu Olhar Para o Céu e Ver-se a Si Mesma


Há instantes na história em que a humanidade parece ter respirado de forma diferente, como se a atmosfera tivesse mudado de densidade e, de repente, fosse possível ver o invisível. O Renascimento Científico e a Revolução Científica, entre os séculos XVI e XVII, são desses momentos. Não apenas períodos cronológicos, mas verdadeiros terramotos na forma como o homem se pensava a si, ao mundo e ao cosmos.

Não escrevo aqui como académico de toga e biblioteca empoeirada. Escrevo como quem se senta à janela de uma vida comum, a pensar em como é que uns poucos homens e mulheres, munidos apenas de cérebros inquietos e instrumentos rudimentares, ousaram desarrumar séculos de certezas dogmáticas. E escrevo também, como escrevo no Recanto dos Suricates: com ironia, com indignação e com a estranha ternura que nasce do reconhecimento de que a história é feita tanto de clarões como de sombras.

I. As raízes do renascimento do saber

O Renascimento Científico não nasceu do nada. Foi filho legítimo do Humanismo Renascentista, esse movimento que devolvera ao homem a dignidade da razão e a ousadia da curiosidade. Ao mesmo tempo, foi neto das bibliotecas árabes e bizantinas que preservaram e comentaram os textos gregos enquanto a Europa medieval se entretinha com cruzadas e inquisições.

As universidades europeias, que começavam a organizar-se, foram o cadinho desta mistura. Os clássicos antigos voltavam a ser estudados, mas não como dogma: como interlocutores. Aristóteles já não era o fim da conversa, mas o início. E com a invenção da imprensa, o conhecimento deixou de ser privilégio de uns poucos monges copistas para se tornar combustível de uma rede em expansão.

II. Copérnico: o escândalo do centro

O polaco Nicolau Copérnico foi talvez o mais silencioso dos revolucionários. Em 1543, publica De revolutionibus orbium coelestium, propondo que afinal não era a Terra o centro do universo, mas o Sol. Aparentemente simples, esta mudança era um golpe profundo na visão medieval: o homem já não estava no centro privilegiado da criação, mas num planeta em movimento, perdido entre outros.

A Igreja olhou com desconfiança. Não porque fosse necessariamente contra a ciência, mas porque este deslocamento ameaçava toda a cosmologia que sustentava a teologia e a política. Se a Terra não era centro, que mais poderia deixar de ser?

III. Galileu: o herege com telescópio

Se Copérnico lançou a ideia, Galileu Galilei pôs-lhe carne e ossos. Com o seu telescópio, viu luas a girar em torno de Júpiter, montanhas na Lua, manchas no Sol. O céu, que a teologia dizia ser perfeito e imutável, mostrava-se irregular, dinâmico, cheio de cicatrizes.

Galileu não apenas observava; escrevia em italiano, a língua do povo, divulgando e desafiando. E foi chamado a Roma, julgado pela Inquisição e forçado a abjurar. A imagem do cientista ajoelhado diante dos inquisidores tornou-se símbolo do choque entre a nova ciência e a velha ordem. Diz-se que murmurou: Eppur si muove, “E, no entanto, ela move-se”. Verdade ou mito, a frase ressoa como manifesto: a realidade não se curva perante a autoridade.

IV. Kepler e as órbitas elípticas

Johannes Kepler, alemão, completou e corrigiu Copérnico. Demonstrou que as órbitas não eram círculos perfeitos, mas elipses. A harmonia do cosmos era mais complexa do que a geometria antiga permitia imaginar. A matemática tornava-se a linguagem secreta do universo.

E aqui está um ponto essencial: a Revolução Científica não foi apenas uma acumulação de descobertas. Foi a invenção de uma nova gramática. A natureza passou a ser lida como um livro escrito em linguagem matemática. Pitágoras e Platão rejubilariam: o cosmos era número.

V. Francis Bacon e o método experimental

Se a observação era crucial, também era preciso método. Francis Bacon, inglês, sistematizou o que já vinha sendo praticado: a ciência deveria basear-se na indução, na experiência, na verificação. Contra a especulação vazia, propôs a observação organizada e a experimentação repetida. O saber tornava-se ferramenta de poder: scientia potentia est.

O que Bacon legou foi mais do que um método; foi uma atitude. A desconfiança perante verdades estabelecidas, a exigência de prova, a convicção de que o mundo podia ser decifrado passo a passo.

VI. Descartes e a dúvida metódica

Se Bacon é o apóstolo da experiência, René Descartes é o patrono da razão. A sua dúvida metódica, duvidar de tudo até encontrar uma certeza indestrutível, levou ao célebre Cogito, ergo sum. Penso, logo existo. A ciência cartesiana era geométrica, racional, dedutiva.

Entre Bacon e Descartes instala-se a tensão que ainda hoje percorre a ciência: a balança entre empirismo e racionalismo, entre dados e teorias, entre o olhar e o pensamento. É nesse diálogo que a ciência cresce.

VII. Newton: a síntese magistral

Isaac Newton é o ponto culminante. Com os Principia Mathematica (1687), unificou o céu e a terra numa mesma lei: a gravitação universal. A maçã que cai e a Lua que orbita obedecem à mesma equação. Pela primeira vez, o universo parecia não apenas inteligível, mas governado por leis universais, matemáticas, previsíveis.

A imagem do mundo mudou para sempre. Já não era um palco de mistérios insondáveis, mas uma máquina cósmica, grandiosa e precisa. Newton tornou-se, na imaginação popular, quase um demiurgo...

VIII. As instituições da ciência

Não foram apenas indivíduos. A Revolução Científica criou instituições: a Royal Society em Londres, a Académie des Sciences em Paris. Nasciam as comunidades científicas modernas, com revistas, correspondência, debate e verificação por pares. O saber deixava de ser aventura solitária e tornava-se empreendimento colectivo.

IX. As sombras da luz

É tentador romantizar esta época como puro triunfo da razão. Mas a mesma Europa que media estrelas colonizava continentes, escravizava povos, explorava sem medida. A confiança na ciência como poder também alimentou ambições de domínio. A máquina cósmica tornou-se, em mãos humanas, também máquina de guerra.

E não esqueçamos: muitas mulheres que contribuíram, como Margaret Cavendish ou Maria Cunitz, foram silenciadas ou esquecidas. A revolução foi, em larga medida, masculina e elitista.

X. O eco na modernidade

Vivemos ainda dessa herança. O método científico, a confiança na razão, a ideia de leis naturais universais, tudo isso é fruto dos séculos XVI e XVII. Quando hoje discutimos clima, genética, inteligência artificial, estamos a continuar o caminho aberto por Copérnico, Galileu, Bacon, Descartes, Newton.

Mas também herdámos os dilemas: a arrogância do saber, a ilusão do domínio, a tentação de reduzir o humano a máquina. O legado é ambivalente: libertador e perigoso.

XI. Conclusão: entre o céu e a terra

O Renascimento Científico e a Revolução Científica ensinaram-nos que o universo é vasto, que as certezas são frágeis, que o saber é processo e não dogma. O homem deixou de ser centro imóvel e tornou-se viajante no cosmos.

Talvez a lição maior não seja a de Newton ou Galileu, mas a coragem de olhar para cima, duvidar do que parecia evidente e confiar que a razão humana, por limitada que seja, pode rasgar horizontes. É essa coragem que precisamos hoje, num mundo cheio de novos dogmas e de novas inquisições…

Nota de autoria: Este texto foi escrito com recurso a uma ferramenta de inteligência artificial, tal como foi escrito com recurso ao fogo que aquece, à energia eléctrica, à roda que trouxe o computador até à minha secretária, à matemática que sustenta os algoritmos e à óptica que me permite ver o ecrã através dos meus óculos. Se tivesse de declarar todas as mãos invisíveis que me trouxeram até aqui, esta nota ocuparia mais páginas do que o próprio texto. Fiquemos, então, pelo essencial: a responsabilidade é minha, a orientação é minha, e a voz, essa, continua a ser a mesma que reconheço quando me leio a mim próprio.

quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Margaret Cavendish e Maria Cunitz - As Vozes Silenciadas da Revolução Científica


Há nomes que a história empurra para a sombra, como se fossem notas marginais num livro que apenas alguns se dão ao trabalho de ler até ao fim. Margaret Cavendish e Maria Cunitz são dois desses nomes. No entanto, sem elas, a narrativa da Revolução Científica fica incompleta, truncada, amputada de parte do seu corpo. É este ensaio um gesto de restituição: devolver-lhes lugar, não por generosidade tardia, mas por justiça histórica. Não se trata de piedade, mas de rigor. Escrevo como quem procura libertar da poeira do esquecimento vozes que foram abafadas não pela falta de mérito, mas pelo peso de uma ordem social que decretava a invisibilidade das mulheres.

I. O silêncio imposto

O século XVII foi tempo de génio e de conflito. Newton, Galileu, Descartes e Kepler são nomes inscritos a fogo no mármore da memória colectiva. Mas este panteão é masculino porque a ordem social assim o quis. Às mulheres, restava o espaço doméstico, a sombra da autoridade dos pais, maridos ou irmãos. Que duas tenham ousado quebrar essa regra é já, em si, uma revolução.

Cunitz e Cavendish viveram num tempo em que publicar um livro sendo mulher era quase uma afronta, em que entrar numa academia científica era visto como uma excentricidade perigosa. A Royal Society de Londres, nascida para ser templo do saber, só admitia homens. A Académie des Sciences em Paris, idem. As mulheres podiam ser musas, nunca autoras; podiam inspirar, não pensar. É contra esta maré que estas duas se ergueram.

II. Margaret Cavendish: a duquesa que pensava

Nascida em 1623, aristocrata inglesa, Margaret Cavendish teve o privilégio da educação, mas também o fardo da diferença. Casou com William Cavendish, duque de Newcastle, que a incentivou a escrever. E ela escreveu como poucas mulheres da sua época: poesia, filosofia, teatro, tratados de ciência. Publicou em vida mais de uma dezena de livros, feito raríssimo para qualquer mulher do seu tempo.

A sua obra Observations upon Experimental Philosophy (1666) é uma crítica às ideias mecanicistas de Descartes e Boyle. Cavendish recusava a ideia de que a natureza era uma máquina morta. Para ela, havia vitalismo, uma espécie de “alma” na matéria. Era, ao mesmo tempo, crítica e criadora, ousando questionar os grandes.

Não ficou por aí. No mesmo ano, publicou The Blazing World, um romance utópico que muitos consideram a primeira obra de ficção científica. Nele, uma mulher viaja para um mundo paralelo, torna-se imperatriz e governa uma sociedade científica. Não era apenas literatura: era manifesto. Cavendish dizia, em metáfora, o que a sociedade lhe negava em realidade.

Em 1667, foi convidada a assistir a uma reunião da Royal Society. Entrou, sentou-se, ouviu. As crónicas contam que foi recebida com curiosidade, mas também com troça. Era vista como excêntrica, extravagante. Mas estava lá. Rompeu a barreira invisível.

O que fica dela é esta dupla ousadia: pensar por si, escrever em público, recusar a obediência silenciosa. Cavendish não quis ser apenas espectadora da ciência; quis ser interlocutora. E foi-o, mesmo que os ecos só mais tarde tenham sido reconhecidos.

III. Maria Cunitz: a astrónoma das órbitas

Enquanto Cavendish escrevia em Inglaterra, na Silésia, território disputado entre o que hoje é Polónia e Alemanha, Maria Cunitz dedicava-se às estrelas. Nascida por volta de 1604, filha de um médico culto, aprendeu línguas, música, pintura e, sobretudo, matemática e astronomia.

Em 1650, publicou a obra que a tornaria célebre: Urania Propitia. Tratava-se de uma simplificação das complicadas tabelas astronómicas de Kepler. Os Rudolphine Tables de Kepler eram tecnicamente rigorosos, mas complexos e de difícil manuseio. Cunitz reescreveu-os, corrigiu erros e simplificou os cálculos. O que fez foi abrir a astronomia prática a um público mais vasto de estudiosos e observadores.

Escreveu em latim, como mandava a erudição, mas também em alemão, para que mais leitores a pudessem entender. Essa decisão revela uma visão humanista: democratizar o saber. Tornou o cosmos mais acessível. E isso, na prática, foi uma revolução silenciosa.

Os contemporâneos reconheceram-lhe mérito. Foi chamada “a mais erudita astrónoma da Europa”. E, no entanto, foi progressivamente esquecida, eclipsada por nomes masculinos. A história oficial esqueceu-se de registar que parte do trabalho de Kepler se tornou utilizável graças à pena e ao cálculo de uma mulher.

IV. Ecos e paralelos

Coloquemos lado a lado Cavendish e Cunitz. A primeira, filósofa e escritora, ousando desafiar os grandes sistemas de pensamento. A segunda, astrónoma e calculista, simplificando e difundindo o saber astronómico. Diferentes geografias, diferentes estilos, mas o mesmo gesto: recusar a invisibilidade.

Ambas tiveram acesso ao saber graças a contextos familiares privilegiados, riqueza ou erudição. Mas o que as distingue é terem usado esse privilégio não para se acomodarem, mas para transgredirem. Cavendish publicou livros, Cunitz publicou tabelas. Ambas disseram: também nós pensamos, também nós contamos.

V. A sombra do esquecimento

Porque foram esquecidas? Em parte porque as instituições que fixaram a memória eram masculinas. Em parte porque as suas obras não encaixavam na narrativa triunfante da ciência mecanicista, masculina, universal. A história foi escrita pelos vencedores, e os vencedores foram homens que viam nas mulheres, quando muito, curiosidades.

Mas há mais: o preconceito estrutural que via na voz feminina algo menor, excêntrico, quase folclórico. Cavendish foi apelidada de “Mad Madge” pelos seus contemporâneos. Cunitz foi respeitada, mas sempre como excepção. Nenhuma pôde ser paradigma.

VI. O lugar que lhes é devido

Recuperar Cavendish e Cunitz não é exercício de anacronismo feminista. É repor verdade histórica. Sem elas, a história da ciência fica distorcida. A filosofia natural não foi só Descartes e Bacon; teve também Cavendish. A astronomia prática não foi só Kepler e Newton; teve também Cunitz.

E há um segundo gesto: ao recuperá-las, entendemos melhor os limites da própria Revolução Científica. A exclusão feminina não foi por falta de capacidade, mas por estruturas sociais. Cavendish e Cunitz provam-no.

VII. O eco no presente

Hoje, quando falamos de inclusão na ciência, estas duas mulheres são símbolos. Símbolos de que sempre houve vozes femininas competentes, mas silenciadas. Símbolos de que a ciência só se cumpre quando é de todos. Símbolos, sobretudo, de coragem.

Há algo de profundamente actual na atitude delas: publicar apesar do escárnio, calcular apesar da exclusão. Não são apenas personagens históricas; são faróis para qualquer um que, hoje, sinta que a sua voz não conta. Elas provam que, mesmo abafada, uma voz pode atravessar séculos.

VIII. Conclusão: devolver o nome às estrelas

Se quisermos ser justos, teremos de reescrever manuais. Ao lado de Galileu, pôr Cavendish. Ao lado de Kepler, pôr Cunitz. Não como notas de rodapé, mas como interlocutoras. O cosmos que estudaram e imaginaram é o mesmo em que hoje navegamos. E, se o céu é de todos, também a história da sua decifração deve ser.

O Renascimento Científico e a Revolução Científica foram, sim, épocas de génio. Mas esse génio não foi exclusivo de homens. Cavendish e Cunitz lembram-nos que a ciência nunca foi uma voz única. Foi, sempre, um coro. E o silêncio a que foram condenadas não apaga a melodia que deixaram. Cabe-nos, hoje, escutá-la de novo e devolvê-la ao palco da memória.

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