quarta-feira, 21 de agosto de 2013

...como penas pontas de asa...

Algures numa estrada por onde passava, senti um som gordo no peito. Estalava como as palmas das mãos de meninas, esticando dolorosamente os dedos para trás, como penas nas pontas de uma asa.

Uns braços varriam a linha da estrada, como que indicando um hipotético caminho. Os caminhos, compostos de generosas quantidades de vazio, de nadas e de aridez... Podemos caminhar e até mesmo voltar para trás, com uma ilusória sensação de liberdade; mas podemos também cruzar a fronteira — para o desconhecido ou para um regaço embalado por déjà vu's

Timbres de pequenas canções, cantadas ao som de batidas em latas e ferros. Eu poderia salvar-me, claro que sim! Bastava, para isso, que quisesse.

Querer de um modo inequívoco, em que tudo o que compõe a decisão fosse claro e abarcasse toda a amplitude da palavra e do ato.

Mas qual das salvações desejo?

Na estrada, a maré está alta! As raízes que brotam do asfalto, quais ondas térmicas, desenham caminhos ladeados de trompetes cujas terminações ecoam em dós menores de oboés…

Mas este... Este é apenas mais um dos percursos possíveis na existência de um homem...

Caminhemos...


© Mário Rodrigues - 2013

quinta-feira, 6 de junho de 2013

Quem existo efectivamente?... Terá importância?...



Nas noites em que as tardes não ficaram…

Nas vidas em que as mortes não visitam…
Nos dias em que as manhãs não desabrocharam…
Nas manhãs em que os despertares não explodiram!
Nos amores em que e desejo não matou…
Nas dores em que o ser não morreu!
Nos filhos em que a vida não nasceu…
Nas mortes em que a dúvida não nasceu…
Só aí…
Só aí se sente a ausência de um existir conexo e fortuito, uma vida de raiva e desejo; ora doce e serena, ora louca e, qual dente tubarão; cortante, numa essência conspirativa de existências perdidas e sinapses ofuscadas por embriaguezes neurotransmitidas numa confusão obscura sem certezas de quem efectivamente sou…
Quem serei?
Biologia?
Cada vez mais me acho apenas bicho!...

© Mário Rodrigues - 2013

quinta-feira, 16 de maio de 2013

Debandada derradeira de um amor vital

Um amor verdadeiro...
Um amor impregnante...
Um amor estridentemente silencioso...

Cheguei às 6.20 h. Encontro-o solitariamente abalado no meio da multidão.
- Zé!
- Mário!
- Não te consigo dizer nada!
- Desde ontem, quando ela..., deixei de ouvir o quer que seja...

Notei-lhe uma existência entre a madeira e um esferovite, com as evidências vitais reduzidas aos sistemas voluntários. Muito pouco ali estava de homem. Absolutamente nada de conforto.

- Ontem, dizia-me ela à tarde:
    "Sinto-me cansada! Estas correrias matam-me!..."
- Nunca me contava as coisas, quando sabia que eu ia ficar chateado!... Agora aqui estão os meus restos. Os dela, ali... Nem forças tenho para estar chateado...

© Mário Rodrigues - 2013

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

...Enfim, este é o Deus que me convém!...

Isso?... Isso não é nada!... Aliás, tu nem sabes o que é!
Jamais serás iluminado pela luz plena! Jamais sentirás o perfume inebriante e penetrante que enche inteiramente a tua existência redundante. A do meu Deus!...

Havia vários, no entanto fiquei com este, porque este é o que mais me convêm!

...Este:

Mata os ímpios
Destrói os infames
Castiga os que me incomodam
Devolve-me as riquezas
Abunda-me com deleites
Castiga-te no rancor do remorso
Apascenta a minha ganância
Justifica os meus crimes
Fundamenta a minha crueldade
Justifica a minha estupidez
Castra-te a vida
Alegra-se na minha conspiração
Auxilia na ambição e mais, muito mais...

Se sofro é ele
Se tenho fome é ele
Se meu filho morre é ele
Se corro é ele
Se durmo é ele
Se vilmente me iludo é ele, mas não só...

Quando mato é por ele
Quando usurpo é por ele
Quando castro é por ele
Quando privo é por ele
Quando minto é por ele
Quando desrespeito é por ele
Quando intransijo é por ele
Quando a verdade altero é por ele
Quando da ingenuidade me aproveito é por ele
Quando da boa-fé abuso é por ele... E é assim porque está escrito,

Nas palavras que escrevi
Nas verdades que encobri
Nas mentiras que defendi
Nas realidades que alterei
Nos monstros que pari
Nas jugulares que cortei
Nos corações que feri
Nos inocentes que queimei
Nos movimentos que bani
Nos obedientes que mal tratei
Nas virgens que violei
Nos homens que matei...

...Enfim, este é o Deus que me convém!...

© Mário Rodrigues - 2010

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