quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Realmente não sei se algum dia me sentirei satisfeito...


O ritmo da vida durante todo ano, nem sempre, ou melhor raramente me deixa a serenidade e o silêncio de que não prescindo para fazer as minhas leituras. Frequentemente recorro ao isolamento da sala escura ou ao sossego da madrugada para, quase furtivamente, me deixar embalar e absorver pelas leituras que cada vez menos prescindo. Não obstante tal aventura, há livros que pela sua "densidade", acabo por deixar para as férias. Em período de férias o meu metabolismo desce a níveis perto do torpor. A esse fenómeno, de modo nenhum é estranho o facto, que há já muito cultivo e tenciono continuar, de manter bem longe dos meus olhos e ouvidos, qualquer meio de informação. Jornais, rádio e televisão estão expressamente proibidos de entrar no meu quotidiano de férias. Ao fim de três dias, sem esses autênticos mensageiros da desgraça, o meu humor e saúde mental melhoram numa relação inversamente proporcional aos níveis de adrenalina e excitabilidade em que vivo o resto do ano. Assim, aproveito o facto acordar sempre muito cedo, seis da manhã normalmente, para no silêncio e na calma que o sono profundo de toda a família, bem como com a frescura que manhã proporciona, me entregar a quatro ou cinco horas de "voos literários".
Nestas férias, levei para terminar de ler, um livro muito bom de Gabriel Garcia Marquez, "O Outono do Patriarca" e um outro para começar de Dostoievski, "O Idiota". Sem qualquer previsão acabei por ler pelo meio "As aventuras da Memória" de Voltaire que encontrei em formato "Pocket Book".
Já regressado das ditas férias, visito uma livraria, de que sou cliente assíduo, e entre umas preciosidades de Aldous Huxley, comprei um livro que não era suposto comprar. Raramente compro livros que estão em escaparate, publicitados até à exaustão, com nomes e capas "vestidos para matar" e cujas primeiras páginas tresandam de maravilhosas críticas dos "Guardian", "Observer", "Economist" e "Telegraph". Se me oferecessem aquele livro, certamente que o deixaria a...envelhecer em prateleira de carvalho...até tropeçar nele; mas não só não me foi dado como o comprei. Uma compra muito improvável, mas que num impulso, peguei e levei junto com os outros, para a caixa para pagar. Gabriel Weston. "Confissões de uma cirurgiã". Com "O Idiota" a meio, e na breve olhadela que dou por todos os livros que compro, com o intuito desnecessário de estabelecer a posição cronológica e nunca respeitada, das leituras dos mesmos, cravo os olhos nas páginas do dito e li, li...li mais um pouco e constato que é um "livrito" engraçado. Nada do que trás escrito me é estranho ou novidade. Parece-me que podia, perfeitamente escrever uma coisa daquelas sem grande esforço. Por se tratar de um livro relativamente pequeno, decido lê-lo de seguida e acabá-lo logo de uma vez, para mais rapidamente lamentar o dinheiro que tinha dado por ele.
Três dias depois estou a acabá-lo de ler. Nas últimas páginas encontro aquilo que, por ventura, me deixa a pensar e que eu considero o mais relevante para mim. O livro termina de um modo que eu não previa. Não só não previa, como tão bem me identificava. Num universo de altíssima competição como é este, o hospitalar, há posições e decisões que não esperamos. Muitas vezes nem as compreendemos, ou porque descontextualizados, ou porque nem ponderamos a contextualização.
O facto de em detrimento de uma carreira, optar por uma micro ou nula visibilidade profissional e social, com o intuito de se ser mais pai, mais esposo, mais filho, mais humano, mais partilhado, mais ouvinte, mais conversador...não é, de facto, muito esperado, lógico ou até mesmo bem visto.
Os anos em cujas noites e os dias foram passados nos hospitais, nas farmácias e nas vmer, os aniversários eram dias iguais ou piores que os outros bem como os Natais, Páscoas, funerais e bênçãos de fitas, dias importantes como os em que os filhotes mostram a dança das borboletas nas festas de fim de ano...foram-se acumulando.
Lembro-me da minha mulher passar por um dos hospitais, quando a caminho da faculdade, para me dar um beijo, porque não nos víamos há três, quatro ou cinco dias. Lembro-me de um dia, depois de dois beijos e um café rápido, a ficar a ver ir-se embora e pensar - "...aquela mulher é-me quase estranha!... - A distância tem sido tal, que...chego a ter uma sensação de viagem para o infinito sem regresso...
Se dessa vez, uma chamada na vmer me fez voltar à vida no fio da faca. Mais tarde, já em contexto de bloco operatório as coisas mudaram. Chegava a casa de madrugada, quase todos os dias, e em bicos de pés, deslizava até ao quarto dos meus filhos, pequeninos, e os cheirava, e observava... e acariciava os punhos fechados, num misto de força e fragilidade... sentia-os desprovidos...
Nas minhas inúmeras noites de serviço, quando o trabalho permitia, tinha por hábito passear pelos corredores das enfermarias, não só para "piscar o olho" aos meus colegas que também estavam de "vela", mas também para observar os doentes nas suas eventuais tranquilidades. Lembro-me de achar a neonatologia e a pediatria com uma angustiante semelhança à medicina interna. Se de um lado bebés e do outro idosos, mas ambos sós!... Lembro-me de lamúrias e lamentos que mais não eram que pedidos de - "por favor chega-te a mim um pouco...olha para mim e deixa que que olhe também..." - Lembro-me de bebés que o simples timbre da voz da progenitora os fazia calar e acalmar de choros sentidos...
Os meus; eu sabia ser o "super-herói" que eles exibiam aos colegas, mas não sabia se eles tinham feito cocó, ou se tinham comido bem, ou se tinham tido alguma rixa com os colegas da creche, lá estavam, de certo modo também sós... Também sabia que tinha mais uns trocos para, com eles e a mãe, fazer coisas que nunca fazia porque não estava a quando das oportunidades. O que eu não sabia, mas aprendi, asperamente, é que eles não precisavam de um super-herói nem de uns trocos... nem eles, nem a mãe deles, nem eu, nem os meus pais... o que nós precisávamos eram tão simplesmente de nós, eventualmente com menos trocos e heroicidades, mas verdadeiros e disponíveis.
Hoje esforço-me para ganhar algum dinheiro a fazer o que gosto. Faço algumas coisas de que gosto muito e me dão um prazer imenso, mas que no entanto, quase pago para as fazer, mas principalmente, estou envolvido numa densa vida humana que me abraça inebriantemente como se fosse um polvo. Parece-me permanentemente, que deveria dar mais atenção e de mim aos outros, sinto que devia sempre ir mais além, devia dar sempre mais um pouquinho, poderia dar, tenho de dar. Realmente não sei se algum dia me sentirei satisfeito...possivelmente não!...

© Mário Rodrigues - 2010

9 comentários:

  1. Caro Mário,

    É com grande prazer e satisfação (e um misto de vergonha por apenas agora o ter feito) que descubro o blog de um dos meus leitores mais assiduos.
    Estou desde e oficialmente um fã seu.
    Constato que foi tripulante de uma vmer, gostava muito de o poder fazer e deixe-me lhe dizer que trabalho nobre esse o da emergencia médica.

    Em relação ao post própriamente dito identificomente com ele em cada linha e frase. Também eu me debato com esse tempo desperdiçado e com essa ausencia.

    Mais uma vez quero lhe dar os parabéns pelo blog.

    Vamo-nos "vendo" por cá.

    Um abraço

    MorTo Vivo

    ResponderEliminar
  2. Olá amigo Morto

    Não tenhas vergonhas de sinceridade!... Sabes, como é óbvio, gosto que as pessoas leiam, se tiverem pachorra, o que vou escrevendo! No entanto, nunca fiz disto uma troca de galhardetes. Por vezes, como é o caso deste, os post's são um pouco longos, mas terão de ser assim para não serem maiores! ;))
    Este recanto é teu; visita e diz o que entenderes desde que sincero... ;)

    Um abraço

    ResponderEliminar
  3. Olha, e eu não assisti a este encontro! Já cá volto, Mário, que isto tem de ser lido com mais calma e estou de saída...

    ResponderEliminar
  4. Boas noites Sr. Cybe,

    Nesta casa. o senhor entra e sai quando entende e nada tem a dizer!
    Nem ao suposto "dono"

    ;))

    ResponderEliminar
  5. E o tempo foi passando, nem sei como... Desde dia 3... Caneco... O pior é que falas de coisas que conheço, como conhece quem entrega a sua pessoa a uma causa mais que a uma profissão. Este ano foi o dia 2, logo o segundo... Tudo correu bem até às 14H00, depois tocou o telefone, debati-me -grande erro, por inútil- e foi de seguida até às 20H00, e cheguei atrasado para jantar. Queria tanto que me tivessem deixado em paz, ainda que precise de cada coroa como de pão para a boca, trocaria tudo para que me tivessem deixado em paz, para poder ser um amigo normal, uma vez de vez em quando, recordar, naquele dia, dias em que fui mais pai que voz ao telefone, apesar de ser um pouco tarde, e já estarem todos habituados a ver-me assim, sem previsões. Mas penso que tenho sorte. Não é o que faço nem se gosto, com isso aprende-se a lidar, é o valor pelo qual trocamos um ou outro dia que seria fundamental. Por vezes é apenas tão alto que suplanta todos os gostos. A amargura é vendermo-nos por tão pouco num dia, que faz parte de um calendário inteiro em que talvez o preço que nos pagam possa, globalmente, até ser demasiado. Há sempre aquele dia que não tinha preço e que trocámos por esse valor global que sobreavaliamos, mas que também é o que nos permite respirar. Gostava de ter a tua coragem.

    Abraço

    ResponderEliminar
  6. Olá meu bom amigo,

    Leio o que me dizes com cuidado e atenção. A cada passo vou reflectindo em mim. Não me invejes a coragem! Ela não existe! Pelo contrário, o que existe é pânico! Um medo enorme do que os meus pensamentos e a minha "consciência" me façam a mim mesmo! Medo de me ver obrigado a admitir perante mim próprio, que tenho ou tive uma existência inútil e perfeitamente dispensável! Que para nada servi e que nem viver consegui, limitando-me a sobreviver.
    Enquanto te escrevo isto, vai-me assaltando a cabeça o pensamento de que no fundo nada mais sou que um egoísta pseudo-activo!... Será, quanto muito, uma ferramenta, de cabo partido, para lutar por uma sobrevivência não corpórea. Uma espécie de armistício...

    Portanto, meu amigo, isto não é coragem mas antes medo!
    Isto não é altruísmo mas antes egoísmo!

    Mais corajoso me pareces tu, que sabendo do mesmo que eu, não te submetes aos domínios, enfrentando os medos e dominando os pânicos...

    Um abraço

    E... temos de ir almoçar um dia destes.

    ResponderEliminar
  7. Olá Mário!

    Gostei muito deste texto, "temos que estar disponíveis e sermos verdadeiros" (cito de memória), um texto que se vai continuar nos comentários, com muito nível!

    Um abraço,

    Jorge

    ResponderEliminar
  8. Olá Jorge,

    É uma grande verdade, essa que nos dizes, "temos que estar disponíveis e sermos verdadeiros"... Nem sempre se trata de um exercício fácil! Muitas vezes é mesmo doloroso! No entanto, já diziam os nossos antepassados que "O que arde cura e o que aperta segura!"...

    Um abraço

    ResponderEliminar

…Escrevo, principalmente, por falta de espaço dentro de mim para tantas emoções e tão grandes, para mim. Nos comentários, fico com a sensação de que os pingos de emoção que transbordo, caiem em "terras fecundas" e coadjuvam o nascimento de novas emoções, produzem opiniões, contra pontos e desafios… E isso, isso é “geleia real”, para as nossas vidas…

Mensagens populares