sábado, 27 de setembro de 2025

As Sementes Debaixo da Neve - Os Fantasmas Desobedientes da Reforma e o Grito Anabaptista


Sento-me, por vezes, num daqueles muros baixos de pedra, já gastos pelo tempo, cobertos de um musgo que se agarra à vida com a teimosia dos deserdados. Olho para as fissuras, para as pequenas plantas que, contra todas as probabilidades, ali nascem, crescem e morrem, indiferentes ao betão e ao alcatrão que as rodeia. São um insulto silencioso à ordem, uma teimosia biológica que me recorda outras teimosias, outras sementes que se recusaram a morrer debaixo da neve de invernos que pareciam não ter fim.

A História, essa senhora de moral duvidosa que se deita sempre com os vencedores, gosta de narrativas limpas, de heróis imaculados e de revoluções com data de início e fanfarra no fim. Contam-nos a Reforma Protestante como um grande sopro de liberdade, um murro na mesa de um Lutero destemido contra a opulência e a podridão de Roma. E é verdade, foi isso. Mas, como sempre, a verdade inteira é uma coisa muito mais suja, mais complexa, mais… humana. É uma tapeçaria onde os fios de ouro da coragem se cruzam com os fios de excremento, essa verdade inescapável que nenhum verniz civilizacional consegue abolir da ambição, do poder e da traição.

Enquanto os grandes nomes, Lutero, Calvino, Zuínglio, renegociavam a sua fé com Deus, faziam-no de braço dado com os príncipes e os magistrados. Reformavam, sim, mas com a bênção do poder temporal. Queriam uma Igreja mais pura, mas uma que continuasse a ser o cimento da sociedade, o carimbo na certidão de nascimento de cada súbdito, de cada cidadão. Era uma Reforma Magisterial, uma transferência de poder, uma mudança de gerência na grande empresa da salvação europeia. O povo, esse, continuava a ser gado, apenas mudava de pastor e, por vezes, de chibata.

Mas por baixo deste palco iluminado, nos becos escuros da História, moviam-se outros. Fantasmas, espectros, homens e mulheres para quem a reforma não era uma negociação, mas uma demolição. Eram os radicais, os que levaram o Sola Scriptura de Lutero não como um lema, mas como uma navalha. Se a Bíblia era a única autoridade, então que autoridade tinham os príncipes em assuntos de fé? Que validade tinha um baptismo imposto a uma criança que balbuciava, um rito que a transformava, sem o seu consentimento, em peça de uma engrenagem estatal-religiosa?

E é aqui, nesta pergunta incómoda, que nascem os anabaptistas. Um nome que lhes foi cuspido na cara pelos seus inimigos, um insulto que significava "rebaptizadores". Para eles, contudo, não havia rebaptismo, porque o primeiro, o da infância, não passava de uma aspersão de água sem sentido, um carimbo burocrático, um contracto assinado por um analfabeto existencial.

Eles foram ainda mais longe… Sempre que leio esta frase, sinto um arrepio. Mais longe. Mais fundo no poço da verdade, ou talvez mais perto da beira do abismo da loucura. Foram mais longe porque se atreveram a pensar o impensável no século XVI: que a fé era uma escolha. Uma escolha adulta, consciente, perigosa. Uma decisão que se tomava não no berço, mas de pé, a olhar o mundo nos olhos, sabendo que essa escolha podia custar a vida.

Rejeitar o baptismo infantil. Parece-nos hoje, a nós, filhos de um tempo cínico e dessacralizado, uma questiúncula teológica, uma daquelas discussões que entretêm padres e pastores em sínodos poeirentos. Mas naquele tempo, era dinamite. Era arrancar a certidão de nascimento e cidadania da mão do Estado e da Igreja. Era dizer que a sociedade, o Corpus Christianum onde todos eram cristãos por decreto de nascimento, era uma farsa. Era declarar que a verdadeira Igreja não era uma nação inteira, mas uma pequena comunidade de voluntários, de gente que escolheu estar ali, de gente que se reconhecia mutuamente como irmãos numa caminhada, não como concidadãos numa parada.

Isto era anarquia. Era sedição. Era um cancro social aos olhos de católicos e protestantes. Porque se a Igreja é uma comunidade voluntária, então o Estado deixa de ter controlo sobre a alma dos seus súbditos. A uniformidade quebra-se. O príncipe luterano, o conselho calvinista ou o bispo católico perdem o seu poder mais fundamental: o de definir a identidade de cada pessoa que nasce nos seus domínios. Os anabaptistas, com a sua teimosia em só baptizar adultos, não estavam apenas a fundar uma nova seita; estavam a inventar o indivíduo. E o indivíduo, como bem sabemos, é a coisa mais perigosa que existe para quem manda.

Destas sementes perigosas, brotaram outras, ainda mais inaceitáveis para a época. Se a Igreja é uma comunidade de iguais perante Cristo, como justificar as hierarquias rígidas, os bispos-príncipes, os pastores-funcionários? O sacerdócio de todos os crentes, outra ideia de Lutero que os anabaptistas levaram às últimas consequências, significava que qualquer camponês, qualquer artesão, podia ler a Bíblia e, se o Espírito o movesse, pregar e liderar a sua comunidade. Era uma democratização radical da fé que punha em causa séculos de poder clerical.

E iam mais longe. Nas suas comunidades, tentavam viver o Sermão da Montanha à letra. A maioria abraçou um pacifismo radical. Recusavam pegar em armas, prestar juramentos (o que os tornava inúteis em tribunal e desleais aos olhos do suserano) e exercer cargos públicos. Como poderia um cristão, seguidor do Príncipe da Paz, ser juiz e condenar um homem à morte? Como poderia manejar a espada, quando o seu mestre disse para oferecer a outra face? Eram, aos olhos do mundo, cidadãos inúteis, cobardes, uns parasitas que se recusavam a cumprir os deveres mais básicos. Aos seus próprios olhos, eram os únicos cidadãos coerentes do Reino de Deus.

Esta recusa em participar no jogo do poder levou-os à ideia mais moderna de todas: a separação total entre a Igreja e o Estado. A Igreja, diziam eles na Confissão de Schleitheim em 1527, é uma comunidade de crentes, separada do mundo. A espada do magistrado serve para punir os maus no mundo, mas não tem qualquer poder ou lugar dentro da comunidade de fé, que se rege pelo amor e pela disciplina fraterna. E, inversamente, a Igreja não deve nunca usar a espada do Estado para impor a sua verdade. Numa Europa em que cada príncipe impunha a sua religião aos seus súbditos (cuius regio, eius religio), esta ideia não era apenas herética; era traição.

Claro que o movimento não era um bloco monolítico. Como em todas as sublevações dos desesperados, houve quem levasse a esperança apocalíptica para o campo da loucura e da violência. O episódio de Münster, em que um grupo de anabatistas radicais tomou a cidade à espera do fim do mundo e instituiu a poligamia e a teocracia, foi o presente de propaganda que os seus inimigos pediam a Deus. Aquele horror, aquela aberração, foi usada para pintar todos os anabatistas, incluindo os pacíficos Irmãos Suíços ou os seguidores de Menno Simons, com as cores do fanatismo e da anarquia. É uma tática velha como o mundo: pegar no extremo mais louco de um movimento para justificar o esmagamento de todos os que dele fazem parte. Os energúmenos de hoje, no poder, não inventaram nada.

E o esmagamento veio. Impiedoso, sistemático, universal. Foram o único grupo a ser perseguido com igual sanha por católicos e por todos os ramos do protestantismo. A Dieta de Speyer (assembleia imperial do Sacro Império Romano-Germânico), em 1529, tornou o "rebaptismo" um crime punível com a morte em todo o Sacro Império. Eram caçados como animais. Afogados, numa paródia cruel ao seu batismo por imersão. Queimados, como hereges que eram. Torturados, para que renunciassem a uma fé que, para eles, era a única coisa que dava sentido à existência. Os rios da Europa central ficaram tingidos com o sangue destes teimosos. Os reformadores que clamavam por liberdade de consciência face a Roma não hesitaram em acender as suas próprias fogueiras para queimar aqueles que ousavam ter uma consciência livre face a eles. A hipocrisia, essa, é a única teologia universal e ecuménica.

Morreram aos milhares. Parecia um beco sem saída, um ramo seco na árvore da História, um grito abafado pelo ruído dos canhões e dos dogmas. Um fracasso.

Mas as sementes, por vezes, sobrevivem debaixo da neve.

O movimento sobreviveu nos menonitas, nos amish, nos hutteritas. Pequenos grupos, fechados, que mantiveram viva a chama da não-violência, da comunidade e da separação do mundo. Pareciam fósseis, relíquias de um tempo passado, irrelevantes para o grande curso da História. E, no entanto, as suas ideias, como pólen levado por ventos invisíveis, viajaram e foram polinizar outras mentes, outros solos.

E é aqui que chegamos ao Iluminismo. Parece um salto paradoxal. O que podem ter em comum estes místicos bíblicos, estes camponeses teimosos, com os filósofos das Luzes, os racionalistas, os céticos como Voltaire ou os empiristas como Locke? Aparentemente, nada. Os filósofos do século XVIII olhavam para os fanáticos religiosos da Reforma com desprezo. E, no entanto, respiravam o ar que os anabatistas, com o seu sangue, tinham ajudado a criar.

Pensemos nas grandes bandeiras do Iluminismo: a razão, sim, mas também a tolerância, a liberdade de pensamento, a liberdade de consciência, os direitos do indivíduo contra a tirania do Estado e da Igreja. De onde vieram estas ideias? Os filósofos foram buscá-las à Antiguidade Clássica, sem dúvida. Desenvolveram-nas com uma lógica e uma profundidade filosófica que os anabatistas nunca tiveram. Mas a ideia de que a consciência de um homem é um santuário inviolável onde nenhum rei ou bispo pode entrar, essa ideia não nasceu nos salões de Paris. Nasceu nas torturas e nas fogueiras da Reforma Radical.

Quando os anabatistas afirmavam que a fé é uma decisão pessoal e que o Estado não tem qualquer jurisdição sobre a alma, estavam a lançar, em linguagem teológica, os fundamentos para o que mais tarde seria secularizado como liberdade de consciência.

Quando pediam para não serem perseguidos pela sua fé, não estavam a pedir apenas pela sua sobrevivência. Estavam a articular, de forma desesperada, um princípio de tolerância religiosa. A sua própria existência, dispersa por vários territórios com diferentes religiões oficiais, obrigou-os a pensar num modelo em que diferentes crenças pudessem coexistir, não por bondade, mas por necessidade.

Quando exigiam uma Igreja completamente separada do Estado, estavam a desenhar o rascunho de uma das maiores conquistas da modernidade ocidental, a parede que protege a liberdade individual da tirania teocrática, seja ela qual for.

John Locke, o pai do liberalismo, teorizou sobre a tolerância e a separação de poderes. Mas ele cresceu numa Inglaterra que tinha sido virada do avesso por puritanos, quakers e outros dissidentes que eram, em muitos aspetos, os herdeiros espirituais da Reforma Radical. Os Quakers, com o seu pacifismo e a sua ênfase na "Luz Interior" (uma versão individualista e mística da fé consciente), são primos diretos dos anabatistas em espírito, se não em linhagem.

Quando Voltaire brada "Écrasez l'infâme!" ("Esmagai a infame!"), referindo-se à intolerância da Igreja, o seu grito ecoa, sem que ele o saiba, os gritos dos milhares de anabatistas afogados e queimados duzentos anos antes por essa mesma infame intolerância, fosse ela católica ou protestante.

E quando os Pais Fundadores dos Estados Unidos da América, homens como Thomas Jefferson e James Madison, imbuídos do espírito iluminista, escrevem na Primeira Emenda da sua Constituição que "o Congresso não fará nenhuma lei a respeito de um estabelecimento de religião, ou proibindo o seu livre exercício", eles estão a canonizar, em linguagem legal e secular, o princípio mais sagrado e mais perigoso dos anabatistas. Não é por acaso que a América, com a sua multiplicidade de denominações voluntárias, se tornou o refúgio de menonitas, amish e outros grupos descendentes desta tradição. A semente encontrou finalmente um solo onde podia crescer sem ser esmagada pela bota do Estado.

A ironia é imensa. Os anabatistas, que baseavam tudo na revelação divina e na letra da Bíblia, tornaram-se os pais involuntários de um mundo secular em que a liberdade de consciência permite até mesmo o ateísmo. O seu sacrifício por uma fé pura e sem compromissos abriu o caminho para uma sociedade onde a fé se tornou uma opção privada. A sua busca pelo Reino de Deus na terra ajudou a criar as fundações de um reino dos homens mais justo e mais livre. Eles não eram iluministas. Eram, em muitos aspetos, o seu oposto. Mas sem a sua teimosia sombria, sem o seu "não" rotundo à fusão entre a espada e a cruz, o Iluminismo teria tido um caminho muito mais difícil a percorrer.

Hoje, sentados nos nossos confortos relativos, olhamos para eles como figuras distantes, extremistas, talvez um pouco loucas. Vivemos num mundo que absorveu as suas ideias mais radicais ao ponto de as acharmos banais, a liberdade de escolher a nossa crença ou não-crença, a ideia de que o governo não se deve meter na nossa consciência. Tomamos estes direitos como garantidos, como o ar que respiramos. Esquecemos o preço. Esquecemos que cada um destes direitos foi comprado com o sofrimento de gente como os anabaptistas, gente que foi ao fundo do poço, que foi esmagada, mas cujas ideias, como aquelas pequenas plantas nas fendas do muro, se recusaram a morrer.

Eles são a prova de que, por vezes, os verdadeiros terramotos da História não são causados pelos homens que se sentam nos tronos, mas pelos que são arrastados para as masmorras. São a prova de que as ideias, uma vez libertadas, têm uma vida própria e podem acabar a iluminar os netos dos que tentaram apagá-las. São os fantasmas desobedientes da nossa modernidade, os antepassados inconvenientes da nossa liberdade.

Olho de novo para o muro. O Sol já vai alto. A pequena planta continua lá, a fazer a sua fotossíntese silenciosa. Ignorada pela maioria, insignificante no grande esquema das coisas. Mas está lá. Resiste. E, por vezes, isso é tudo o que importa… Realmente, não sei se algum dia me sentirei satisfeito… possivelmente não!… Mas olhar para estas teimosias, históricas ou botânicas, dá-me um estranho e amargo consolo. A luta, mesmo quando perdida, talvez nunca seja inteiramente em vão.

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