quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Margaret Cavendish e Maria Cunitz - As Vozes Silenciadas da Revolução Científica


Há nomes que a história empurra para a sombra, como se fossem notas marginais num livro que apenas alguns se dão ao trabalho de ler até ao fim. Margaret Cavendish e Maria Cunitz são dois desses nomes. No entanto, sem elas, a narrativa da Revolução Científica fica incompleta, truncada, amputada de parte do seu corpo. É este ensaio um gesto de restituição: devolver-lhes lugar, não por generosidade tardia, mas por justiça histórica. Não se trata de piedade, mas de rigor. Escrevo como quem procura libertar da poeira do esquecimento vozes que foram abafadas não pela falta de mérito, mas pelo peso de uma ordem social que decretava a invisibilidade das mulheres.

I. O silêncio imposto

O século XVII foi tempo de génio e de conflito. Newton, Galileu, Descartes e Kepler são nomes inscritos a fogo no mármore da memória colectiva. Mas este panteão é masculino porque a ordem social assim o quis. Às mulheres, restava o espaço doméstico, a sombra da autoridade dos pais, maridos ou irmãos. Que duas tenham ousado quebrar essa regra é já, em si, uma revolução.

Cunitz e Cavendish viveram num tempo em que publicar um livro sendo mulher era quase uma afronta, em que entrar numa academia científica era visto como uma excentricidade perigosa. A Royal Society de Londres, nascida para ser templo do saber, só admitia homens. A Académie des Sciences em Paris, idem. As mulheres podiam ser musas, nunca autoras; podiam inspirar, não pensar. É contra esta maré que estas duas se ergueram.

II. Margaret Cavendish: a duquesa que pensava

Nascida em 1623, aristocrata inglesa, Margaret Cavendish teve o privilégio da educação, mas também o fardo da diferença. Casou com William Cavendish, duque de Newcastle, que a incentivou a escrever. E ela escreveu como poucas mulheres da sua época: poesia, filosofia, teatro, tratados de ciência. Publicou em vida mais de uma dezena de livros, feito raríssimo para qualquer mulher do seu tempo.

A sua obra Observations upon Experimental Philosophy (1666) é uma crítica às ideias mecanicistas de Descartes e Boyle. Cavendish recusava a ideia de que a natureza era uma máquina morta. Para ela, havia vitalismo, uma espécie de “alma” na matéria. Era, ao mesmo tempo, crítica e criadora, ousando questionar os grandes.

Não ficou por aí. No mesmo ano, publicou The Blazing World, um romance utópico que muitos consideram a primeira obra de ficção científica. Nele, uma mulher viaja para um mundo paralelo, torna-se imperatriz e governa uma sociedade científica. Não era apenas literatura: era manifesto. Cavendish dizia, em metáfora, o que a sociedade lhe negava em realidade.

Em 1667, foi convidada a assistir a uma reunião da Royal Society. Entrou, sentou-se, ouviu. As crónicas contam que foi recebida com curiosidade, mas também com troça. Era vista como excêntrica, extravagante. Mas estava lá. Rompeu a barreira invisível.

O que fica dela é esta dupla ousadia: pensar por si, escrever em público, recusar a obediência silenciosa. Cavendish não quis ser apenas espectadora da ciência; quis ser interlocutora. E foi-o, mesmo que os ecos só mais tarde tenham sido reconhecidos.

III. Maria Cunitz: a astrónoma das órbitas

Enquanto Cavendish escrevia em Inglaterra, na Silésia, território disputado entre o que hoje é Polónia e Alemanha, Maria Cunitz dedicava-se às estrelas. Nascida por volta de 1604, filha de um médico culto, aprendeu línguas, música, pintura e, sobretudo, matemática e astronomia.

Em 1650, publicou a obra que a tornaria célebre: Urania Propitia. Tratava-se de uma simplificação das complicadas tabelas astronómicas de Kepler. Os Rudolphine Tables de Kepler eram tecnicamente rigorosos, mas complexos e de difícil manuseio. Cunitz reescreveu-os, corrigiu erros e simplificou os cálculos. O que fez foi abrir a astronomia prática a um público mais vasto de estudiosos e observadores.

Escreveu em latim, como mandava a erudição, mas também em alemão, para que mais leitores a pudessem entender. Essa decisão revela uma visão humanista: democratizar o saber. Tornou o cosmos mais acessível. E isso, na prática, foi uma revolução silenciosa.

Os contemporâneos reconheceram-lhe mérito. Foi chamada “a mais erudita astrónoma da Europa”. E, no entanto, foi progressivamente esquecida, eclipsada por nomes masculinos. A história oficial esqueceu-se de registar que parte do trabalho de Kepler se tornou utilizável graças à pena e ao cálculo de uma mulher.

IV. Ecos e paralelos

Coloquemos lado a lado Cavendish e Cunitz. A primeira, filósofa e escritora, ousando desafiar os grandes sistemas de pensamento. A segunda, astrónoma e calculista, simplificando e difundindo o saber astronómico. Diferentes geografias, diferentes estilos, mas o mesmo gesto: recusar a invisibilidade.

Ambas tiveram acesso ao saber graças a contextos familiares privilegiados, riqueza ou erudição. Mas o que as distingue é terem usado esse privilégio não para se acomodarem, mas para transgredirem. Cavendish publicou livros, Cunitz publicou tabelas. Ambas disseram: também nós pensamos, também nós contamos.

V. A sombra do esquecimento

Porque foram esquecidas? Em parte porque as instituições que fixaram a memória eram masculinas. Em parte porque as suas obras não encaixavam na narrativa triunfante da ciência mecanicista, masculina, universal. A história foi escrita pelos vencedores, e os vencedores foram homens que viam nas mulheres, quando muito, curiosidades.

Mas há mais: o preconceito estrutural que via na voz feminina algo menor, excêntrico, quase folclórico. Cavendish foi apelidada de “Mad Madge” pelos seus contemporâneos. Cunitz foi respeitada, mas sempre como excepção. Nenhuma pôde ser paradigma.

VI. O lugar que lhes é devido

Recuperar Cavendish e Cunitz não é exercício de anacronismo feminista. É repor verdade histórica. Sem elas, a história da ciência fica distorcida. A filosofia natural não foi só Descartes e Bacon; teve também Cavendish. A astronomia prática não foi só Kepler e Newton; teve também Cunitz.

E há um segundo gesto: ao recuperá-las, entendemos melhor os limites da própria Revolução Científica. A exclusão feminina não foi por falta de capacidade, mas por estruturas sociais. Cavendish e Cunitz provam-no.

VII. O eco no presente

Hoje, quando falamos de inclusão na ciência, estas duas mulheres são símbolos. Símbolos de que sempre houve vozes femininas competentes, mas silenciadas. Símbolos de que a ciência só se cumpre quando é de todos. Símbolos, sobretudo, de coragem.

Há algo de profundamente actual na atitude delas: publicar apesar do escárnio, calcular apesar da exclusão. Não são apenas personagens históricas; são faróis para qualquer um que, hoje, sinta que a sua voz não conta. Elas provam que, mesmo abafada, uma voz pode atravessar séculos.

VIII. Conclusão: devolver o nome às estrelas

Se quisermos ser justos, teremos de reescrever manuais. Ao lado de Galileu, pôr Cavendish. Ao lado de Kepler, pôr Cunitz. Não como notas de rodapé, mas como interlocutoras. O cosmos que estudaram e imaginaram é o mesmo em que hoje navegamos. E, se o céu é de todos, também a história da sua decifração deve ser.

O Renascimento Científico e a Revolução Científica foram, sim, épocas de génio. Mas esse génio não foi exclusivo de homens. Cavendish e Cunitz lembram-nos que a ciência nunca foi uma voz única. Foi, sempre, um coro. E o silêncio a que foram condenadas não apaga a melodia que deixaram. Cabe-nos, hoje, escutá-la de novo e devolvê-la ao palco da memória.

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