quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Como atropelar uma ratazana que saiu de uma sarjeta a correr I

O acto de atropelar é na realidade uma acção constrangedora! Tenho de, desde já, afirmar e antes de mais, que o atropelamento terá de ser acidental. De contrário trata-se de um assassinato e os assassinatos são sempre condenáveis pelo que se assim for recusar-me-ei a fazer a síntese de tal acto e isto acaba já aqui!

Não? É acidental?
Está bem! Então irei ser breve!

Terei de considerar se o local do atropelamento é numa cidade, numa vila ou se é numa estrada do campo. No campo não é porque nas estradas do campo não existem sarjetas. A existência de uma sarjeta pressupõe passeios a ladear uma rua, sendo que tal não é muito vulgar nos campos. No entanto nas estradas do campo existem aquedutos, e a ratazana poderia sair de um! Se isso é certo, também é certo de que o acto em causa é o de "Atropelar uma ratazana que saiu de uma sarjeta a correr", e não "Atropelar uma ratazana que saiu de um aqueduto a correr".

Tenho de ter em conta a existência, ainda que pouco vulgar, de uma estrada com passeios e sarjetas no campo. Isto é muito importante porque as ratazanas do campo estão integradas num meio que lhes é natural em que se desenrola a luta pela sobrevivência e como todos os outros seres tem uma missão a cumprir na biodiversidade do habitat... E as ratazanas da cidade... também...

Isto demonstra que não deve haver razões acidentais para, por acidente, atropelar uma ratazana do campo em detrimento de uma da cidade.

Tenho de considerar também se me estou a deslocar a pé, de bicicleta, de mota, de automóvel, de veículo pesado de carga, de veículo pesado de passageiros, de avião ou mesmo de barco!

De barco?

Porquê a admiração em relação ao barco, renegando para segundo plano o automóvel ou mesmo o andar a pé?

Se me estiver a deslocar a pé, terei de garantir algumas condições para que o acto se desenrole acidentalmente. Terei de providenciar, acidentalmente, que eu, tal como o animal em causa, estaremos em marcha e absoluta e inadvertidamente distraídos e absortos da realidade naquele momento. Só assim, conseguir-se-á reunir as condições acidentais para o acto. Terei de observar ainda que não se vá dar um pisamento, nem um abalroamento... Um atropelamento com um pé pode parecer difícil, mas está exclusivamente dependente do empenho e arte de o fazer por acidente.

Não! Nem pensar nisso!... Por momentos, poder-se-ia pensar num enorme pontapé!... Fácil seria se o acto não fosse acidental, mas disso já disse que não falo...

(continua...)

© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

O portão forjado

Estava sinceramente agradado por, já à porta de casa, ter regredido um pouco e ter ido buscar o casaco. Era um casaco já bastante usado, cinza de uma malha polar "débil", mas que se tornara largo e confortável para os períodos em que estava a "hibernar" pelas proximidades de casa. Com as mãos nos bolsos, fecho éclair bem corrido até bem perto do pescoço, ia dando uns passos... Involuntariamente, ia atirando com um pé para a frente do outro, de modo que a cinética do tronco, não ultrapassasse perigosamente o eixo do centro de gravidade, o que em duas palavras, diria - caísse estatelado.

Ia a pensar em como seria difícil, não pensar em nada! Procurava uma inexistente possibilidade de conseguir não pensar em nada...

O passeio tinha cerca de dois metros de largura, ladeado do meu lado esquerdo por um muro, relativamente alto, com grandes zonas cobertas de hera, pedaços de reboco centenário prometendo a sua iminente queda, as pedras, as do passeio, pequenos cubos irregulares de calcário branco, estavam polidas e húmidas do intenso orvalho da noite. Este conjunto, muro e passeio, tinha a sua disposição aberta, coberta nas alturas pelas altas folhagens de vários carvalhos, tílias e castanheiros, na direcção do norte. O Sol nascera-me nas costas, garantindo uma húmida sombra na quase totalidade do dia.

Não obstante, um condenado, no dia em que sabe da sua sentença de morte, e possivelmente, depois da revolta, desejaria que a mesma fosse executada de imediato. Esse, deve ter a cabeça a explodir de tantos pensamentos. Uma boa parte da pena, senão mesmo a pior, é a tentativa inglória de querer por ordem hierárquica nos pensamentos e sentimentos nesses momentos. A dor do tempo que ainda falta, que possibilita a manutenção de tal inferno.

A abundância da humidade facultava a proliferação de um verdete, perigosamente escorregadio. Aquele "L" contínuo, composto pela união do muro com o passeio, prolongava-se no horizonte. Lá, bastante ao fundo, um feixe de raios de Sol, desciam a quarenta e cinco graus, antecipando a ainda tardia chegada do meio-dia e do sul, aproveitadores eficazes da interrupção do muro que fazia adivinhar um portão e de um céu com tendências a limpo adornado por cúmulos alvos e fofos.

Parado, a olhar para os cinco ou seis degraus que o levam ao cimo da plataforma da guilhotina ou da forca ou até mesmo do cepo do carrasco... Pensará ele - Já falta pouco!... Penso que o pânico o abraça. O ser humano tem por natureza, o sentimento de morte eminente. É um sistema de alarme extremo com vista a salvar a vida. Será controlável e manipulável? Não me parece, pelo facto de que é completamente involuntário. Não sei se o saco de pano negro na cabeça produzirá efeito! Aliás, acho que produz, mas qual? A cabeça, nessa ocasião estará vazia ou a velocidade e quantidade de sentimentos e pensamentos, provoca o colapso e paragem da consciência? Todos os sentidos estão em funcionamento, ainda, isso é certo! Com a cabeça pendente da espera da lâmina da guilhotina, escuta o destravamento da lâmina de, também quarenta e cinco, mas desta feita quilos e não graus... Curiosa esta coincidência!... Ambos os quadros, este e os raios de Sol, metamorfoseiam a vida e a morte!... Vai ouvindo o consequente silvo da descida da lâmina pelas corrediças. Parecerá ensurdecedor e eterno esse silvo? Não tenho a certeza que exista, nesse momento, alguma luta interior para contrariar a cena!... Possivelmente será um silvo de libertação. Finalmente!...

Com o olhar no chão, reparo agora que estou a caminhar, à razão de uns trinta passos por minuto, e com o olhar no chão! Estando eu a andar tão devagar, ainda estou com medo de tropeçar? Quando ando na correria no trabalho, não ando a olhar para o chão!... Mesmo porque se assim fosse, andava aos encontrões em toda a gente por os não ver!... E isso seria no mínimo constrangedor! Por que razão não vou a olhar em frente? Acho que isto, de quanto mais devagar ando, mais para baixo olho, já é uma imagem de marca. Sempre assim foi! Até já me chamaram uns "nomitos" por este meu hábito de andar com "os olhos no chão".

Fisiólogos e estudiosos da neurologia e da consciência afirmam que os neurónios funcionam e alimentam pensamentos, mesmo com a cabeça decepada, durante cinco segundos!... Como sabem eles dos cinco segundos? E se forem dez? Ou até mesmo trinta como chegam a defender alguns? Estará nessa ocasião a cabeça a não pensar em nada? Isso seria o derradeiro contra-senso!

Se, empiricamente, já cheguei à conclusão de que não se consegue não pensar em nada, em ultima análise porque isso em si, já é pensar em alguma coisa, como é que estando a cabeça em funcionamento não pensaria em nada? Parece-me claro que realmente pensa. Pensa o quê? Quais poderão ser os pensamentos de uma cabeça que acabou de ser decepada do resto do corpo há instantes?
Perdi a vida?
Já está? Finalmente?
Agora é que vai ser?
...

É!... Realmente é um portão. Enorme, forjado em ferro grosso e forte. O ferreiro foi muito sensível ao fazê-lo! Nota-se o detalhe e o esmero no trabalho! Das duas, três; ou ia receber boa maquia pelo trabalho, ou o nobre do palácio que estava por detrás deste portão era um bom homem querido por todos. Também poderia ser só rico pela força do trabalho escravo e do chicote!... Não, não era de certeza! Notava-se no forjado das cornucópias e dos caracóis, uma dedicação suave e meiga...se o contrário fosse, notar-se-ia a raiva e a brutalidade do ferro... O ferreiro, esse não o encobriria!...

© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Passos

Há passos nas nossas vidas, que são marcados pelos passos que damos na nossa vida de passos vividos e com passos por viver...
Com passos percorremos caminhos, quantos deles, longos e pedregosos caminhos, onde os passos são difíceis e dolorosos...
Dos que já dei, tento reter as arestas aguçadas que me rasgando o dorso ensinaram manhas para os próximos...
De muitos deles, não lhes soube o significado nem sei se algum dia saberei...
Nos que já dei, desgraçadamente, algumas vezes via alguém a meu lado com maior fardo; sim, há sempre fardos maiores. Tive, nessa altura dificuldade em ajudar os outros, mesmo porque nada tinha para além de ouvidos com que escutar lamentos e desabafos...
A cada lamurio que ouvia, sentia-me um pouco melhor, mesmo porque acabava de constatar que tinha sido miseravelmente útil, por momentos, a alguém. Hoje, com passos dados e, espero, muitos para dar, vejo essencialmente o caminho de uma maneira diferente da que via. Vejo também que o que nos pode ajudar não é o caminho que percorremos, mas as memórias e as lições dos passos dados, bem como o propósito e a vontade de outros passos vir a dar!...
E há sempre uma coisa que posso fazer! Escutar!...

(Este texto, hoje, é especialmente dedicado à Cátia)

© Mário Rodrigues - 2010

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