segunda-feira, 28 de junho de 2010

O meu amigo Tintas... O raposo...


No outro dia, ia eu no vinte cinco, o eléctrico para os Prazeres, quando encontrei o Tintas o raposo. Já havia muito que nos não encontrávamos!...

- Então Tintas? Como estás? A Micas raposa?
- Olá Mário! Vai-se andando!
- O resto da raposada? Pergunto eu.

Enquanto nos sentávamos para que a viagem fosse um pouco mais confortável, junto a uma das janelas, passávamos ali ao "Corpo Santo", e íamos seguindo a nossa conversa...

- Olha Mário...estão bem! Eu é que tenho andado um pouco apreensivo...
- Então? Meu velho amigo canídeo!
- Eu e a minha Micas andamos um pouco "perdidos"!... Sabes os meus raposos já têm as suas idades e já seguiram à vida deles. O Mais novo arranjou uma raposita muito jeitosa e também está a organizar a vida dele... Agora ando mais a minha Micas a aprender a viver um com o outro... Os dois... Sozinhos...

Íamos passando ali pela Rua de São Paulo, na Bica, e o meu amigo Tintas fica a olhar pela janela pensativo...

- Que diabo Tintas! Estás com a Micas há tantos anos e tens de aprender a viver com ela? Agora?
- Mário! Quando me casei com a Micas, também eu saí de casa de meus pais. Agora vou-me apercebendo de que os meus pais, muitas vezes andavam à espreita de um pouco de vida, acorrendo e aturando-nos a nós e aos meus pequenos. Eles bem sabiam que eu e os meus irmãos andávamos furtivos em longas caçadas, mesmo porque essa também tinha sido a sua história. Então sempre que podiam, ou arranjavam umas lebres frescas para reunir a raposada, ou na falta de tal, chamavam os meus pequenos e os dos meus irmãos lá para a toca. Aquela balbúrdia dava-lhes cabo da cabeça, dos nervos e também de algumas carcaças de coelho, mas...também lhes devolvia uma agitação própria de grandes correrias... Por vezes, eu e a minha Micas não acedíamos com facilidade, pois sabíamos que os pequenos todos juntos são o "diabo" e que lhes davam com os focinhos nas paredes até partir. Os meus com os primos comiam este mundo e o outro, para além de chantagearem os avós com as maiores diabruras... Então fui reparando que eles, os meus pais, apesar de cansados, desejavam aquela agitação, desarrumação e balbúrdia toda, por razões especiais... Agora vejo o grande e inocente erro dos meus pais!...

A manhã estava um pouco abafada e aquele sol abrasador em "Santos" estava-me a assar os braços! Isto dantes tinha umas persianas...ia eu pensando...

- Ó Tintas! Mas que erro é que os teus pais fizeram?
- Sem qualquer noção disso, nem eu nem a Micas, depois de juntos tínhamos os nossos projectos! Certo?
- Sim! Penso que sim!
- Pois claro que sim! Uma toca em condições, umas peles para os dias frios de inverno, umas pombas e uns coelhos na dispensa, eu construía uns xilofones com os ossos das costelas dos coelhos e tinha uma banda impecável. A Micas, fazia compotas para a feira anual das melhores compotas...bem te recordas que tínhamos sempre mil coisas para fazer e, claro está, namorar...brincávamos um com o outro e fomos tendo dias felizes... Apareceram os pequenos e os dias passaram ainda a ser mais felizes. Só que, com o caminhar dos anos, os projectos da Micas e os meus foram sendo largados, com desculpas de que já não tínhamos tempo, nem paciência, nem idade e que tínhamos a raposada para olhar e criar e mais não sei o quê... Enfim... Reparei nisso, há algum tempo, antes do mais novo se "arranjar"... Ele teve fora uns dias a aprender umas novas maneiras para apanhar os "torcazes". Eu e a Micas dissemos um para o outro:
"Não temos cá o pequeno, vamos gozar umas férias catitas!..."
- Saíste-me cá um raposão!...
- Pois saí!... Fomos a uma toca de rodízio de roedores com frutas, que é um espectáculo...assim que acabamos viemos para a toca!... Começamos a ver um filme de galinhas...a meio, já estávamos fartos e chateados!...e para te ser sincero, começamos a olhar um para o outro e parece que já nem namorar sabíamos... Deixámos de saber o que fazer os dois sozinhos...esquecemos completamente como é que se vive a dois...
- Pois a raposada vai à vida e depois... Esquece-se...
- Ó Mário, mas a raposada nem nunca nos pediu, nem tem a culpa de eu e a minha Micas, termos descuidadamente transformado todos os divertimentos e ideias que tínhamos de coisas que fazíamos e outras que queríamos fazer, numa única coisa, quase obsessiva, que foi cria-los!... Vazamos as nossas cabeças de tudo o que lá tínhamos e enchemo-las exclusivamente com a ninhada e a sua criação... A ninhada depois de criada foi à vida dela e as nossas cabeças... Vácuo! Ficaram vazias! Não fizemos a gestão adequada das nossas prioridades emocionais e intelectuais... Acabámos de criar ninhada e ficámos sem nada para fazer... Pelo menos enquanto desejo e gosto. Um projecto que preencha a vida, o tempo e a vontade de amanhã ter uma serie de coisas para fazer no seguimento de um algo mais que já não seja criar a ninhada...

Já bebia um refresco. Se bem que me está a entrar aqui uma brisa vinda do Jardim da Estrela... Hum! Que fresquinho!...

- Ó Tintas, mas tu queres ser o Manuel de Oliveira...
- Não me importava, mas quero ter netos, quero brincar e divertir-me com eles, sem que eles em si sejam a minha razão de viver. Tenho de ter uma vida composta por várias causas, trabalhos e prazeres, onde a raposada esteja incluída, mas que não seja a minha bolha de ar vital. Por isso te digo, meu amigo, que realmente tenho andado um pouco apreensivo, porque me sinto quase como quando era um jovem raposito e andava aflito a tentar achar uma coisa para ser quando fosse grande...

Cá estamos. Campo de Ourique!... Tenho belas recordações deste bairro desde os tempos da tropa...

- Tintas! Queres beber uma limonada bem fresquinha debaixo daquelas sombras ali do jardim?
- Vamos a ela, caríssimo!...
...
...E sabes uma coisa? A minha Micas, já não é aquela raposa formosa que me flamejava os olhos com o seu passar, tal como eu também não, diga-se em abono da verdade... Mas...aqueles olhos e o seu focinho húmido ainda me deixam... à procura de "lebre"...


© Mário Rodrigues - 2010

6 comentários:

  1. aqui há dias vi um casal na esplanada, eles olhavam um para o outro como se se tivessem perdido mutuamente... aquilo fez-me tanta confusão que até escrevi sobre eles (ainda não publiquei)acabei por imaginar que depois duma vida a criar um filho chegaram à conclusão que não se conheciam. Acho que demasiados casais se refugiam num objectivo comum para não se terem de confrontar com a falta de paixão...

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  2. Olá Mariana,
    No momento actual da vida conjugal da Micas e do Tintas, não devem sequer querer recuperar a paixão! Se fosse o caso de outra, talvez! Mas nunca a mesma!
    Um casal com vinte ou trinta anos de casado a tentar reviver a paixão nupcial é como os almoços da tropa onde uma série de homens velhos tentam, naquele dia, serem os heróis patetas de uma floração bruta de vida e pujança...de um dia!... Poderá ser e é um espectáculo, mas a fazer e a viver vidas actuais. Se antes eram bonitos agora são sábios!... Não se deve desejar a beleza em detrimento da sabedoria... Diz o poeta "...não voltes ao local onde foste feliz! Só vais encontrar a cinza que dá na garganta nós!..." As coisas não são nem melhore nem piores...são, felizmente, diferentes. Um casal nesse estádio tem uma relação muito mais rica para viver a dois que uma paixão! Muitas vezes terá é de a apreender e descobrir, tão somente porque passou, descuidadamente, uns bons anos consecutivos em que não acariciou, alimentou, desenvolveu a relação como se realmente de um filho se tratasse, mas desta vez, um filho que se chama cumplicidade, etc, etc... A paixão como tudo o resto nas nossas vidas não morre...amadurece e transforma-se e nós temos a obrigação de nos tomarmos conta disso e a desvendarmos e reabilitar a cada momento...

    Ainda há poucos dias estive a beber gotas que transbordavam de um lambuzado amor...lindo de um casal que tem sessenta anos de casamento... Sabes o que mais me despertou a atenção?
    Assisti a um dos filhos a convidá-los para irem dar um passeio de fim-de-semana e eles a declinarem-no com a desculpa que tinham coisas melhores para fazer; iam caminhar no areal a Tróia de mãos nas mãos e iam-se deitar na areia a ver as nuvens com formas de coração e baleias...e ao fim da tarde queriam fazer o seu amor com tranquilidade e não estavam interessados em companhia...

    Um beijo Mariana

    P.S.- Desculpa-me mas estiquei-me no tamanho do comentário. Se não te opuseres, depois de um arranjo era capaz de postar isto.

    Outro beijo

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  3. Todos os dias aparecem novos caminhos, é difícil estabelecer padrões de conduta que funcionem ipsis verbis. Vejo vários desfechos para essa história, as raposas são matreiras, podias ter escolhido um bicho mais inóquo.

    Até que te possa comentar isso ainda tenho de ver se passo no curso. :)

    Abraço!

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  4. Não sabes meu amigo? Eu sempre tive uma relação muito ternurenta com determinados animais...como as vespas...e as raposas... Exigem que lhes prestemos atenção, em vez de um simples afagar como ao nosso amigo cão ou até mesmo ao corvo... ;]

    Abracinhos... «]]

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  5. O meu problema de curso foi ter prestado muita atenção à raposa. Agora xacáver se estou à altura de obter boa nota. "It takes two to tango!", bem sabes que isto com mestrado e doutoramento leva mais que sei lá quantos anos. Não está nas minhas mãos tecer considerações, por muito que queira dar um final feliz à tua história. Quando a raposa te cativa podes até pensar que também se deixou cativar, mas lá está, os entes puros são livres e imprevisíveis, e ainda bem que assim é, nunca podes contar que sucumbem aos teus encantos, tens de te promover e simultâneamente deixar atrair pelo pacote (não, não é esse pacote...), não te podes distrair, tens de reparar na beleza da evolução, ou perdes a capacidade de acompanhar a arte da natureza. Por isso, bem vês que compreendo o que dizes, mas não sei se tenho conhecimentos para passar no exame final, que termina com uma pedra na cabeça, nessa altura falamos.

    Abraço

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  6. As minhas duvidas são as mesmas que as tuas. E a historia...não sei se terá final feliz! Mas uma coisa eu seu! O final vai depender muito da "...capacidade de acompanhar a arte da natureza
    ...". E uma coisa eu já aprendi há muitos anos: o principal é identificar a coisa! Depois... "It takes two to tango!"...

    (Estamos a ficar muito bons nisto... :)))) )

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…Escrevo, principalmente, por falta de espaço dentro de mim para tantas emoções e tão grandes, para mim. Nos comentários, fico com a sensação de que os pingos de emoção que transbordo, caiem em "terras fecundas" e coadjuvam o nascimento de novas emoções, produzem opiniões, contra pontos e desafios… E isso, isso é “geleia real”, para as nossas vidas…

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