sexta-feira, 18 de junho de 2010

Prelúdio de uma inexistência anunciada...




Assim haja Deus... Na verdade o paraíso existe!...

São sete horas e vinte e três minutos da manhã neste preciso momento. Esta brisa, que deve ter aproximadamente vinte e muitos graus célsius, dada a sensação de conforto que me transmite, passa-me pelo rosto e entra-me por entre os botões da camisa "cru", de linho fresco, já entreabertos, transmitindo-me um bem-estar e uma calma que nunca experimentei!...

Recostado na cadeira de lona e madeira, com o oceano quente que me banha até às canelas, usufruo de uma ténue sombra de palmeira que me deixa repousar, sem qualquer irritação, os olhos num cardume de zebrasoma tang, que por ali petiscam...

À extraordinariamente simpática moça que me perguntava:
-"Do you want some thing? Sir!", eu pedi um...
-"Sorry", mas não sei como se chama! Mas tome nota, "please"!

Num copo grande coloque nata fresca e quase gelada, batida com um pouco de caramelo e uma pitadinha de gengibre fresco... Depois, por cima, coloque com muito cuidado, para que se não misture, duas doses de café arábico aromatizado com canela...finalmente e com idêntico cuidado coloque uma dose de "Napoleon" devidamente saturado com menta... Por favor traga-me também uma palha de três olhais laterais...
O que ela trouxe prontamente e com uma perfeição na elaboração...
Huumm! Mesmo muito, muito bom!...
Como a vida é extraordinária!...
-"Excuse me Sir! One letter for you!"
Uma carta para mim? Aqui?
Com certeza que não passará de um engano!
Pego no envelope e...
O remetente sou eu!...

Parece impossível! Como me fui descobrir aqui! Logo desta vez que fiz tudo com um perfeito rigor e secretismo para jamais ser incomodado e descoberto e logo eu, numa perfeita falta de respeito por mim próprio, tenho o arrojo e a pouca vergonha de me incomodar a mim próprio... Estúpido!...

Bem! Vou pelo menos abrir o envelope e ver o que é que me venho dizer!...


"Aqui, hoje deste mês do ano que antecede o próximo.

Excelentíssimo senhor eu, eu venho através desta comunicar-me que, por razões que se prendem com términos do período de batimentos do meu miocárdio previstos no momento da expansão da não-matéria, também chamado criação primordial do universo, estou morto. Assim, e de acordo com a legislação cujo regulamento prevê o abate de indivíduos fora de prazo, deverei providenciar a emissão e atempada remessa de documentação provatória do meu estado de óbito.
Desde já informo-me de que tais provas terão de ser convincentes, sendo que no sistema têm dado entrada provas sem qualquer teor de veracidade do tipo:

"Não respiro há dois dias.", "A Angelina Jolie convidou-me para beber um copo e eu fiquei imóvel" ou até mesmo "Estou roxo e tenho vermes nas entranhas."... Enfim, faz-se de tudo para nos enganarmos.

Sem outro assunto, apresento-me as condolências pela minha morte.
Atentamente, eu."

Sinto-me enjoado. Mas eu estou-me a dizer que estou morto? Mas que me terá passado pela cabeça? Não me recordo de ter recebido qualquer aviso!

Huumm! Nunca fui de confiança! Com toda a certeza que sabendo que estaria para breve a minha morte estive atento ao correio e antes que eu visse o aviso escondi-o, ou até mesmo era capaz de o queimar na lareira, só para que de tal não tivesse conhecimento apanhando-me de surpresa e desprevenido...

Traí-me!
Nunca esperei ser o meu maior inimigo!
Deveria ter-me acautelado, no que diz respeito às minhas desonestas investidas!
Afinal de contas, poderia ter-me preparado convenientemente, com uma vida que neste momento me orgulhasse e por puro desrespeito e total desprezo condenei-me a uma inexistência virtuosa em que tudo ficou por fazer e dizer...
Se eu tivesse sabido...
As coisas maravilhosas que eu teria feito por aquele mundo!...

Já sei!
Vou-me enviar uma carta de resposta, onde me irei opor à decisão e impugnar o acto...

© Mário Rodrigues - 2010

10 comentários:

  1. Eu também me oponho a essa decisão. Só se deve estar morto depois de se morrer. :)


    Beijos

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  2. Olá M.S.Well

    É com prazer que te recebo neste recanto.
    Relembro-te eu, que mais não sou que um viajante da ignorância, que há quem morra antes de estar morto...

    Um beijo. E hoje, especial...com ternura!

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  3. como é triste estarmos mortos antes de morrer. como é doloroso já termos a lápide escrita e a laje preparada para um enterro de um morto-vivo. imagino eu... o que nos escapará nas horas de maior estupidez.

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  4. É isso mesmo taniah, "o que nos escapará nas horas de maior estupidez..."

    Beijo

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  5. e então,para onde é que o morto foi depois disso?

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  6. O morto?
    Esse deveria ir pensar numa existência que lhe desse a possibilidade de jamais ser informado por ele próprio da sua morte...

    Abraço

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  7. mas isto é praga? hoje para todo o lado onde me viro só se fala em morte? que diabo de mau gosto girar-se à volta da morte estando-se vivo.

    os teus textos têm o condão de me fazer recordar :)
    quem diria que já escrevi a mim mesma. de vida para vida! e o quanto toda essa escrita me devolveu vivência :)

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  8. Já mencionei noutro ponto do universo o quanto gostei deste teu momento. Claro que para mim, pessoalmente, sem juízos contaminados de sociedade, e que difícil é separá-los, que os trago marchetados na pele, trata-se de um fantástico exercício de ficção, porque ando a tentar descobrir uma forma de negar as teorias de Einstein para demonstrar que as viagens no tempo não são possíveis, por um lado, e por outro a minha fé me proíbe de aceitar a existência de alguém a quem hei-de provar que não existe, consequentemente existirá um vazio permanente que não permitirá atropelos espaço-temporais. Faltam-me ainda cabelos brancos e sabedoria para que o confirme pelo que, de momento, podes gozar repimpado essas maravilhas, e nós também. :)

    Abraço

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  9. No que respeita a "...negar as teorias de Einstein para demonstrar que as viagens no tempo não são possíveis...", estás à vontade! Eu ajudo-te! ;))
    Eu só não quero é ser informado de que já não vivo!... Ainda que morto estivesse!...

    Abraço

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…Escrevo, principalmente, por falta de espaço dentro de mim para tantas emoções e tão grandes, para mim. Nos comentários, fico com a sensação de que os pingos de emoção que transbordo, caiem em "terras fecundas" e coadjuvam o nascimento de novas emoções, produzem opiniões, contra pontos e desafios… E isso, isso é “geleia real”, para as nossas vidas…

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