quarta-feira, 30 de junho de 2010

Sabeis o que vós quereis da orgia e do sexo?


Dizei-me!... Dizei-me meus filhos...

Pensais que não sois eternos?

Sabeis o que vós quereis da vossa existência?
Sabeis o que vós quereis de vós?
Sabeis o que vós quereis do universo?
Sabeis o que vós quereis da orgia e do sexo?
Sabeis o que vós quereis da gula?
Sabeis o que vós quereis da ambição?
Sabeis o que vós quereis dos narcóticos?
Sabeis o que vós quereis da volúpia e da traição?

Pensais que não sois eternos?

Pois então, com todo o conhecimento e sabedoria, ensinarei e mostrar-vos-ei!

Mostrar-vos-ei como usar a existência!
Mostrar-vos-ei como usar a subjugação!
Mostrar-vos-ei como usar o universo!
Mostrar-vos-ei como usar a orgia o horror e a maldição!
Mostrar-vos-ei como usar a decadência!
Mostrar-vos-ei como usar a exploração!
Mostrar-vos-ei como usar a volúpia!
Mostrar-vos-ei como usar a dependência e a tentação!

Segui-me como uma formiga.
Segui-me como um cordeiro.
Segui-me sem mostrar fadiga.
Segui-me como um escuteiro.

Não sabeis que sois eternos?
Vigiai a cultura do ócio!
Não tenteis compreender!
Apenas segui-me que...
...
...o covil do inferno está próximo!...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 29 de junho de 2010

Viens ici mon petit four...



...
Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
Põe no mesmo saco a sensatez e a loucura...
Sai para a rua e sorri aos outros porque sim...
Anda cá e expulsa as minhas trevas...
Desarruma-me a biblioteca...
E arranca-me todas as ervas...
Troca-me os caminhos...
Faz que eu já não saiba, qual a direcção da solidão...
Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
Acomoda-te no meu caos...
Aposta com os outros que vens ser feliz...
Despenteia-me a compostura...
Põe-me envergonhado por um triz...
Entra-me na alma com os pés descalços e areia...
Convence-me que sou um sortudo...
E tu és uma sereia...

Anda cá!...
Anda!... Chega-te aqui!...
...

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 28 de junho de 2010

O meu amigo Tintas... O raposo...


No outro dia, ia eu no vinte cinco, o eléctrico para os Prazeres, quando encontrei o Tintas o raposo. Já havia muito que nos não encontrávamos!...

- Então Tintas? Como estás? A Micas raposa?
- Olá Mário! Vai-se andando!
- O resto da raposada? Pergunto eu.

Enquanto nos sentávamos para que a viagem fosse um pouco mais confortável, junto a uma das janelas, passávamos ali ao "Corpo Santo", e íamos seguindo a nossa conversa...

- Olha Mário...estão bem! Eu é que tenho andado um pouco apreensivo...
- Então? Meu velho amigo canídeo!
- Eu e a minha Micas andamos um pouco "perdidos"!... Sabes os meus raposos já têm as suas idades e já seguiram à vida deles. O Mais novo arranjou uma raposita muito jeitosa e também está a organizar a vida dele... Agora ando mais a minha Micas a aprender a viver um com o outro... Os dois... Sozinhos...

Íamos passando ali pela Rua de São Paulo, na Bica, e o meu amigo Tintas fica a olhar pela janela pensativo...

- Que diabo Tintas! Estás com a Micas há tantos anos e tens de aprender a viver com ela? Agora?
- Mário! Quando me casei com a Micas, também eu saí de casa de meus pais. Agora vou-me apercebendo de que os meus pais, muitas vezes andavam à espreita de um pouco de vida, acorrendo e aturando-nos a nós e aos meus pequenos. Eles bem sabiam que eu e os meus irmãos andávamos furtivos em longas caçadas, mesmo porque essa também tinha sido a sua história. Então sempre que podiam, ou arranjavam umas lebres frescas para reunir a raposada, ou na falta de tal, chamavam os meus pequenos e os dos meus irmãos lá para a toca. Aquela balbúrdia dava-lhes cabo da cabeça, dos nervos e também de algumas carcaças de coelho, mas...também lhes devolvia uma agitação própria de grandes correrias... Por vezes, eu e a minha Micas não acedíamos com facilidade, pois sabíamos que os pequenos todos juntos são o "diabo" e que lhes davam com os focinhos nas paredes até partir. Os meus com os primos comiam este mundo e o outro, para além de chantagearem os avós com as maiores diabruras... Então fui reparando que eles, os meus pais, apesar de cansados, desejavam aquela agitação, desarrumação e balbúrdia toda, por razões especiais... Agora vejo o grande e inocente erro dos meus pais!...

A manhã estava um pouco abafada e aquele sol abrasador em "Santos" estava-me a assar os braços! Isto dantes tinha umas persianas...ia eu pensando...

- Ó Tintas! Mas que erro é que os teus pais fizeram?
- Sem qualquer noção disso, nem eu nem a Micas, depois de juntos tínhamos os nossos projectos! Certo?
- Sim! Penso que sim!
- Pois claro que sim! Uma toca em condições, umas peles para os dias frios de inverno, umas pombas e uns coelhos na dispensa, eu construía uns xilofones com os ossos das costelas dos coelhos e tinha uma banda impecável. A Micas, fazia compotas para a feira anual das melhores compotas...bem te recordas que tínhamos sempre mil coisas para fazer e, claro está, namorar...brincávamos um com o outro e fomos tendo dias felizes... Apareceram os pequenos e os dias passaram ainda a ser mais felizes. Só que, com o caminhar dos anos, os projectos da Micas e os meus foram sendo largados, com desculpas de que já não tínhamos tempo, nem paciência, nem idade e que tínhamos a raposada para olhar e criar e mais não sei o quê... Enfim... Reparei nisso, há algum tempo, antes do mais novo se "arranjar"... Ele teve fora uns dias a aprender umas novas maneiras para apanhar os "torcazes". Eu e a Micas dissemos um para o outro:
"Não temos cá o pequeno, vamos gozar umas férias catitas!..."
- Saíste-me cá um raposão!...
- Pois saí!... Fomos a uma toca de rodízio de roedores com frutas, que é um espectáculo...assim que acabamos viemos para a toca!... Começamos a ver um filme de galinhas...a meio, já estávamos fartos e chateados!...e para te ser sincero, começamos a olhar um para o outro e parece que já nem namorar sabíamos... Deixámos de saber o que fazer os dois sozinhos...esquecemos completamente como é que se vive a dois...
- Pois a raposada vai à vida e depois... Esquece-se...
- Ó Mário, mas a raposada nem nunca nos pediu, nem tem a culpa de eu e a minha Micas, termos descuidadamente transformado todos os divertimentos e ideias que tínhamos de coisas que fazíamos e outras que queríamos fazer, numa única coisa, quase obsessiva, que foi cria-los!... Vazamos as nossas cabeças de tudo o que lá tínhamos e enchemo-las exclusivamente com a ninhada e a sua criação... A ninhada depois de criada foi à vida dela e as nossas cabeças... Vácuo! Ficaram vazias! Não fizemos a gestão adequada das nossas prioridades emocionais e intelectuais... Acabámos de criar ninhada e ficámos sem nada para fazer... Pelo menos enquanto desejo e gosto. Um projecto que preencha a vida, o tempo e a vontade de amanhã ter uma serie de coisas para fazer no seguimento de um algo mais que já não seja criar a ninhada...

Já bebia um refresco. Se bem que me está a entrar aqui uma brisa vinda do Jardim da Estrela... Hum! Que fresquinho!...

- Ó Tintas, mas tu queres ser o Manuel de Oliveira...
- Não me importava, mas quero ter netos, quero brincar e divertir-me com eles, sem que eles em si sejam a minha razão de viver. Tenho de ter uma vida composta por várias causas, trabalhos e prazeres, onde a raposada esteja incluída, mas que não seja a minha bolha de ar vital. Por isso te digo, meu amigo, que realmente tenho andado um pouco apreensivo, porque me sinto quase como quando era um jovem raposito e andava aflito a tentar achar uma coisa para ser quando fosse grande...

Cá estamos. Campo de Ourique!... Tenho belas recordações deste bairro desde os tempos da tropa...

- Tintas! Queres beber uma limonada bem fresquinha debaixo daquelas sombras ali do jardim?
- Vamos a ela, caríssimo!...
...
...E sabes uma coisa? A minha Micas, já não é aquela raposa formosa que me flamejava os olhos com o seu passar, tal como eu também não, diga-se em abono da verdade... Mas...aqueles olhos e o seu focinho húmido ainda me deixam... à procura de "lebre"...


© Mário Rodrigues - 2010

A revolta de um Suatrub



Um dia, sem que muita importância tivesse o onde e o como, um Suatrub revoltou-se. Acordou quase revoltado e logo em seguida ficou uniforme e totalmente revoltado!
A revolta devia-se principalmente à fúria de não saber quem era! Não conseguia definir-se e caracterizar-se de uma forma sincera e que em simultâneo também fosse correcta e sua. Que fosse exclusiva, própria!

- Quem sou realmente?

Não conseguia responder sem hesitações e nem mesmo com elas...
Sabia de quem era filho, sabia de quem era pai, sabia de quem era cônjuge, (de uma Acetum belíssima que tinha um feitio péssimo e uma mãe...desprezível), sabia a que nome respondia quando chamado, sabia onde e o que fazia e sabia mais uma série de coisas, mas que na melhor das hipóteses lhe eram periféricas! Gravitavam em redor dele como se fossem electrões em camadas sucessivas em torno do núcleo que era ele. No entanto, nada disso era ele!

A indignação disparou, quando estando a pensar nisto, chega à conclusão que nem nos desejos e nos actos ele se conseguia identificar e rever. Respeitava regras, seguia princípios, enveredava por condutas, apoiava causas, concordava e discordava tendo em conta causas e efeitos terceiros, fazia a vontade, fazendo-a ou contrariando-a, a uma enorme quantidade de Suatrubs e Acetum, e nesta sopa gigantesca de vontades transversais, com benefícios e prejuízos para muitos e outros tantos, ele...não era nada de concreto!

O que serei realmente eu - perguntava-se a si mesmo - se o melhor que consigo é ter uma ideia de um espaço pseudo virtual onde poderá haver hipóteses de eu por ali andar!... Mas isso, por si, não me diz o que sou!... Na realidade, nem onde estou me diz!...

Esperem!... Esperem que estou a ter uma ideia!...

Aquilo que mais sinto ser é...zinco, cálcio, sódio, hidrogénio, estrôncio, lítio, ródio, oxigénio, bromo...

Finalmente!... Sinto-me um pouco mais calmo! Estou a começar a vislumbrar quem sou!...

RAIOS!!!

Tudo o que por aqui há é o mesmo que eu!!!

Se não sou nada em particular, nem mesmo o que penso, porque o que penso não sou eu mas apenas pensamentos!...
...
Só posso ser, na realidade, aquilo que não sou!


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Cardhu...bagaço...álcool etílico...perfumes... (reedição)



Hoje venho aqui reeditar um post já passado, pela única razão de que as coisas melhoraram e um desejo muito profundo de alguém, hoje tornou-se realidade...

Há trabalhos que valem muito, mas mesmo muito os sofrimentos com que nos beijam... Obrigado...

...
"Trinta e seis. Em Lourenço Marques!"
"Sim. Foi uma infância maravilhosa...tinha muitos amigos...e animais...a casa era enorme e tínhamos vários empregados...tínhamos uma divisão muito grande onde nos juntávamos todos à noite, onde havia cabeças de animais que o meu pai caçara...e um aquário...um aquário enorme onde tínhamos Tilápias e Muçambas...lindo..."
"1976. O meu pai veio mais tarde...mas veio...houve quem nunca chegasse..."
"Cedo, muito cedo. Pouco tempo depois de chegar. Os trabalhos piores eram para os "retornados". Um dia, um GNR foi lá a casa levar o recado; tinha-se soltado uma viga e que...talvez no dia seguinte pudéssemos levantar o corpo...no Chile, sim na praça do Chile"
"Não, não parei. Depois fiz mestrado e duas pós-graduações, mas..."
"Bastante bem. Escolhia-os. Nunca ia com homens...menos correctos e desalinhados. Tinham de ter, principalmente, capacidade financeira...percorri uma boa parte da Europa e estive nos melhores hotéis..."
"Um dia bateu-me à porta...outra vez! Iria ser diferente...ia deixar a mulher...mas...antes disso...o teste de gravidez deu positivo e ele...filho da puta...tinha a família dele! Disse-me! Somos sempre muito boas mas já mais se casariam connosco...Vermes!"
"Lindo, claro. Como todas as mães acham os seus bebés..."
"Não! Não nos faltava nada. Aturei clientes que...tinham dinheiro e viajavam muito em negócios e reuniões. Precisavam de uma companhia vistosa e culta para exibir aos outros palhaços nos jantares...indivíduos sexualmente desequilibrados...completamente..."
"Era um SLK. Era muito bonito e não foi completamente oferecido..."
"Não, não eram clientes. Era um grupo de amigos impecáveis...íamos vomitando os nossos fantasmas mutuamente..."
"Sim. Fui para a cama com um deles. Mero sexo animal...era uma pessoa especial...não tinha nada a ver com clientes..."
"Sim, já tínhamos bebido bastante...e uns riscos de branca..."
"Parciais! A esquerda tenho dos terços do fémur e a direita o primeiro terço da tíbia..."
"A principio, do bom e do melhor...depois Martin's, Dimple, Cardhu...bagaço...álcool etílico...perfumes..."
"Só duas vezes por semana! E com a vigilância de uma tipa sempre de olho...lutei muito para lhe dar o melhor...deitei tudo a perder..."
"A assistente social disse-me que se as coisas continuassem a melhorar, falava com o advogado para pedirem uma reapreciação...talvez me deixem voltar a ficar com ele..."
"E...posso contar com a vossa ajuda! Não posso?...pelo menos a tua?!..."

© Mário Rodrigues - 2010

1.830$00


Os "sanjo"... Pois observava-os do lado de fora dos vidros das montras e ia imaginando não só os saltos fabulosos como as velozes corridas que proporcionar-me-iam se nos meus pés estivessem... Mas na verdade nunca por cá passaram...
Não obstante o furor feminino era alcançado com os ténis da "galo"... Um dia vi uns ténis da "galo" numa montra que apesar de não serem exactamente os supremos teriam, com toda a certeza, o poder da sedução, embora menor, mas também eu próprio não era um tipo de "topo"... Tinham no entanto a virtude de serem os menos caros de todos, o que talvez me desse a possibilidade de os almejar...
À questão simples, obtiver da minha mãe uma igualmente simples resposta.

-Junta o dinheiro que logo se vê!

Bem, 1.830$00 era uma fortuna... Mas entre os 100$00 que o meu avô Francisco me dava de quando em vez e mais uns trocos daqui ou dali, mais as gorjas da minha mãe me dava por eu ir a correr serra abaixo, mais ou menos um quilometro e meio, qual "Thomas Sawyer" em busca de uns fechos, de uns botões e de umas entretelas...

Não era de um dia para o outro!
Demorava um bocado!
Demorava bastante!...
Demorou demais...

Realmente, quando cheguei a ter os ditos 1.830$00 fui, com ordens expressas e companhia, à loja...
"Não! Já não tenho nenhuns desses! Tenho ali é..."
Fui a outra loja...
"Não! Já não tenho nenhuns desses! Tenho ali é..."
Fui a outra loja...
"Não meu rapaz! A "Le Coq Sportif " já não produz esse modelo! Tenho ali é..."
...
Bem... Terei de comprar outros... Claro que muito menos fabulosos!...

"O quê? Estás mas é maluco!"

Pois sim! Os 1.830$00 acabaram no mealheiro da conta 9078-4 do MPG...


© Mário Rodrigues - 2010

Cybe ;)

Empalados em arenas.


...Segui pelo corredor até ao fim. O corredor era bastante largo e longo. No chão uma alcatifa vermelha, as paredes forradas a nogueira eram relativamente baixas. Ao longo do corredor, junto das paredes estavam figuras de dezenas de pessoas. Todas eram conhecidas. Cantores, pintores, escritores, cientistas, filósofos, etc... Como se fosse estatuas de cera... No final do corredor depois de descer dois suaves degraus encontro duas enormes portas de madeira muito clara parecia abeto ou faia...

Quando empurrei as portas vejo uma espécie de arena toda forrada de veludos e acolchoados, conferindo um ambiente de absoluto e luxuoso conforto.
Por todo o lado existiam varas de madeira com pontas afiadas espetadas no chão com os bicos para cima... Em todas elas estavam pessoas empaladas que sorriam e conversavam alegremente entre elas. Alguns discutiam negócios, taxas de juro, a beleza de senhoras ali ao lado... Tudo completamente indiferente ao insignificante facto de estarem todos empalados...
Reparei que todas as varas tinham uma inscrição, "sapere - tenere - potere"!

Havia oradores, que também empalados, diziam palavras extraordinárias de ordem, de incentivo, de glória, honra e até mesmo esperança... No entanto ninguém lhes parecia dar grande atenção com excepção dos que aguardavam que eles terminassem para eles próprios começarem as orações deles...

Bastante assustado ia passando entre eles observando aquele espectáculo dantesco. De dentro do ventre de uma mulher um feto coloca a cabeça para fora gritando muito zangado e indignado!... Morde-me voraz. Da ferida causada pelas dentadas no meu braço escorreu... Incompreensão, admiração e um pouco de escárnio...

Reparo também que ali andam alguns animais, também eles um pouco assustados. No entanto não estão empalados. Têm um comportamento normal com excepção do facto de morrerem muitos e sem razão aparente. Passado algum tempo de eu por ali andar ouço uma voz nos altifalantes que dia:

"Informamos o senhor, que terá de escolher o local onde pretende fixar a sua existência. Não poderá manter-se mais tempo a por em risco a ordem."

Estranho, vejo que já todos me olhavam identificando-me como sendo o "senhor" de que se falava no altifalante!

Reparo então, que eu próprio me encontrava trespassado por uma daquelas lanças...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 22 de junho de 2010

Num jardim de perfumes doídos...


(Ler o post anterior por favor)
...
...
Desta vez o "Musgo Real" não me conseguiu tranquilizar...
...
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Num banco de pedra, na sombra de uma Olaia... Sinto as palpebras inferiores caírem em linha recta até não sei onde... Do rosto canela da Zilda só vejo os olhos... Uma rede densa de vasos de encarnado expulsivo que rodeia as íris negras constritoradas... Observei-lhe, imóvel e atónito, minuciosamente durante uma vida...os olhos vidrados e paralisados...
Frente a frente, num silêncio absoluto e eterno de brados estridentes de dores sofridas e imaginadas... Tentei lhe calcular o sentir e a dor... Senti-me envergonhado pela tentativa... Não consegui mover uma revolta interior de ódio do homem...

Porque serei eu assim?

O homem também foi uma outra vítima... Ele arrastou a sua morte durante trinta e sete anos...
Vitima... Vitima de quê? Ou de quem?
Vitima, com certeza também foi minha!
Sou só o que faz isto e aquilo? Que gosta de carne quase crua e olha para uma articulação do joelho como se fosse tudo mecânica? Que dá as injecções a si próprio sem a menor hesitação? E que olha para o sangue que lhe sai das veias e imagina-o apressado em correrias levando essências de vida para animar outro corpo algures no mundo?
Também sou o puto que rouba nas lojas porque tem fome ou porque precisa de ser aceite no gang, que lhe também é vital como a comida! Também sou o polícia que lhe dá um tiro à queima-roupa porque na semana passada um dos seus melhores colegas lhe morreu nos braços num tiroteio de rua! Também sou o traficante que matou o polícia que estava a por em risco a sua riqueza e ambição que não é menos passível de protecção que a minha ou a do policia ou a do Sr. Machado, do Presidente, do Ministro ou do Papa!...
Compreendo que nada na vida é um acto isolado! Tudo, mas rigorosamente tudo está interligado...tragicamente interligado...

Jamais teremos capacidades para lidar com os poderes que conhecemos e desconhecemos mas que temos...

Ainda estamos à sombra da Olaia...imóveis e de olhos esbugalhados...

...Curiosamente vem-me à lembrança que as Olaias...também são conhecidas por..."Árvore de Judas"...

"...Se eu quisesse, enlouquecia..."
...sinto dificuldade em manter a postura de opção...


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Sim, latas de conserva com óleo queimado dos carros


"Adeus! Até amanhã!"
"Adeus Mário..."
"O Dr. Ângelo alterou-te a medicação?"
"Não! Diz que estava tudo a ir bem e não era preciso."
...
...
"Olá! Então como vai isso?"
"Olá Mário, bom dia!"
"Dormiste bem?"
"...Sim!..."
"Que sim estranho!..."
"...Tive um pesadelo..."
"Outra vez?"
"Não!... Quer dizer sim mas este foi diferente...acabou bem!..."

"Ai foi? Queres falar disso?"
"Sim! Estava à tua espera porque queria falar-te de...umas coisas..."
"Estou a escutar!..."

"Havia latinhas..."
"Latinhas?"
"Sim, latas de conserva com óleo queimado dos carros. Punha uma em cada pé do beliche para os bichos não me subiram para a esteira. Já me bastava o cabrão de cima que berrava a noite inteira e acabava sempre a mijar-se todo e a mim que estava por baixo. Um dia fudi-lhe um dedo com um...
Numa noite...acho que era de dia mas estava tudo muito escuro e eu não conseguia ver nada. Havia umas coisas ao alto, muito grandes e finas e tinham braços. Os primeiros passos...demorei alguns segundos a dá-los porque não via o chão. Depois corri, corri e cavalguei e galopei e devorei a terra e o mato numa velocidade alucinante até bater numa parede e cair. Levantei-me palpei a parede que tinha cerca de oitenta ou noventa centímetros. Não hesitei pus-lhe a mão de cernelha e saltei-lhe por cima. Tinha muita pressa...

AHAHAHAHAHAHA !!!

Do lado de lá deveria ter uns três metros de altura e eu senti-me cair para o inferno...

Estava tudo negro! Negro muito escuro! Dentro de uma...jaula havia uma merda de uns bichos que se movimentavam muito rápido e gritaram muito... Pareciam umas coisas negras...panteras! Isso, panteras que andavam com as patas da frente no ar. Com a faca rebentei logo com uma e com um arame amarrei-a a um tronco. A outra...atei-lhe a patas da frente no alto. Ela, com as patas rasgou-me a roupa enquanto sangrava não sei porquê! Com o saibro rasguei-lhe a pele, senti-lhe o cheiro e o sabor do sangue... A outra rosnava um rosnar odioso. Implorava cânticos selvagens... A esta senti-lhe vida no ventre...
...existia outro monstro dentro dela... Caí... Vazio... Sem medo nem pavor!
Com a faca abri-lhe as entranhas, arranquei uma cria que deixei no chão a berrar para os outros comerem..."

"Porra!... Meu Deus!...
Queres contar mais?"
...
"Não!... O resto não interessa. Escuta-me outra coisa tens visto a Dra. Zilda?"
"Sim! Ainda há pouco a vi!"
"Gostava de a ver..."
"D. Maria! Pode chamar a Dra. Zilda por favor que o Sr. Machado queria falar com ela, por favor?"
"Sim Mário vou já!"
...
"Mário, ela é uma grande médica! Não é?"
" Sim! Penso que sim! E também tem um lindo rosto canela!... É uma mulher muito bela!"
...
"Olá Mário!"
"Olá Dra. Zilda! Como está?"
"Está tudo bem...vamos andando nos nossos trabalhos!..."
"Então Sr. Machado quer falar comigo?"
"Olá Dra. ...Zilda..."
...
"Sabe Dra. Zilda, contaram-me umas coisas sobre a sua terra e...outras coisas...sobre...
Sinto uma labareda caustica que me corrói e abre buracos por onde não sai nada...só jorra medo e dor...
Perdão! Não vale a pena! Mesmo que o obtivesse de si, de Deus e até do inferno... Nunca o obteria de mim... A sua mãe...era...linda!...nunca pagarei o que fiz..."

Atónitos assistimos a um movimento brusco e calculado há muito, decepou com um pedaço de vidro a carótida interna...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Prelúdio de uma inexistência anunciada...




Assim haja Deus... Na verdade o paraíso existe!...

São sete horas e vinte e três minutos da manhã neste preciso momento. Esta brisa, que deve ter aproximadamente vinte e muitos graus célsius, dada a sensação de conforto que me transmite, passa-me pelo rosto e entra-me por entre os botões da camisa "cru", de linho fresco, já entreabertos, transmitindo-me um bem-estar e uma calma que nunca experimentei!...

Recostado na cadeira de lona e madeira, com o oceano quente que me banha até às canelas, usufruo de uma ténue sombra de palmeira que me deixa repousar, sem qualquer irritação, os olhos num cardume de zebrasoma tang, que por ali petiscam...

À extraordinariamente simpática moça que me perguntava:
-"Do you want some thing? Sir!", eu pedi um...
-"Sorry", mas não sei como se chama! Mas tome nota, "please"!

Num copo grande coloque nata fresca e quase gelada, batida com um pouco de caramelo e uma pitadinha de gengibre fresco... Depois, por cima, coloque com muito cuidado, para que se não misture, duas doses de café arábico aromatizado com canela...finalmente e com idêntico cuidado coloque uma dose de "Napoleon" devidamente saturado com menta... Por favor traga-me também uma palha de três olhais laterais...
O que ela trouxe prontamente e com uma perfeição na elaboração...
Huumm! Mesmo muito, muito bom!...
Como a vida é extraordinária!...
-"Excuse me Sir! One letter for you!"
Uma carta para mim? Aqui?
Com certeza que não passará de um engano!
Pego no envelope e...
O remetente sou eu!...

Parece impossível! Como me fui descobrir aqui! Logo desta vez que fiz tudo com um perfeito rigor e secretismo para jamais ser incomodado e descoberto e logo eu, numa perfeita falta de respeito por mim próprio, tenho o arrojo e a pouca vergonha de me incomodar a mim próprio... Estúpido!...

Bem! Vou pelo menos abrir o envelope e ver o que é que me venho dizer!...


"Aqui, hoje deste mês do ano que antecede o próximo.

Excelentíssimo senhor eu, eu venho através desta comunicar-me que, por razões que se prendem com términos do período de batimentos do meu miocárdio previstos no momento da expansão da não-matéria, também chamado criação primordial do universo, estou morto. Assim, e de acordo com a legislação cujo regulamento prevê o abate de indivíduos fora de prazo, deverei providenciar a emissão e atempada remessa de documentação provatória do meu estado de óbito.
Desde já informo-me de que tais provas terão de ser convincentes, sendo que no sistema têm dado entrada provas sem qualquer teor de veracidade do tipo:

"Não respiro há dois dias.", "A Angelina Jolie convidou-me para beber um copo e eu fiquei imóvel" ou até mesmo "Estou roxo e tenho vermes nas entranhas."... Enfim, faz-se de tudo para nos enganarmos.

Sem outro assunto, apresento-me as condolências pela minha morte.
Atentamente, eu."

Sinto-me enjoado. Mas eu estou-me a dizer que estou morto? Mas que me terá passado pela cabeça? Não me recordo de ter recebido qualquer aviso!

Huumm! Nunca fui de confiança! Com toda a certeza que sabendo que estaria para breve a minha morte estive atento ao correio e antes que eu visse o aviso escondi-o, ou até mesmo era capaz de o queimar na lareira, só para que de tal não tivesse conhecimento apanhando-me de surpresa e desprevenido...

Traí-me!
Nunca esperei ser o meu maior inimigo!
Deveria ter-me acautelado, no que diz respeito às minhas desonestas investidas!
Afinal de contas, poderia ter-me preparado convenientemente, com uma vida que neste momento me orgulhasse e por puro desrespeito e total desprezo condenei-me a uma inexistência virtuosa em que tudo ficou por fazer e dizer...
Se eu tivesse sabido...
As coisas maravilhosas que eu teria feito por aquele mundo!...

Já sei!
Vou-me enviar uma carta de resposta, onde me irei opor à decisão e impugnar o acto...

© Mário Rodrigues - 2010

Expulsa os bolores quando o prazer entrar...


Vem! Arranca esse nó da garganta!
Rasga essa pele negra escura que te aperta!
Tira essas lembranças da alma...
Ordena ao teu corpo que se desmembre...
Grita! Trai a dor na sua essência...
Ludibria o engasgo que se te ostenta...
Espera! Deixa o tempo chegar...
Espera! O tempo arruma as coisas no seu lugar...
O momento será breve! Algum momento chegará de assalto...
Algum momento chegará de manso...
Então, enche bem o peito de ar...
Grita até o firmamento quebrar...
Expulsa os bolores quando o prazer entrar...

...E sorri à vida... Não a deixes chorar...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 16 de junho de 2010

A Mulher...


"O que seria do mundo sem a mulher. Dai às paixões todo o ardor que puderes, aos prazeres mil vezes intensidade, aos sentidos a máxima energia e convertereis o mundo em paraíso, mas tirai dele a mulher, e o mundo será um ermo melancólico, os deleites serão apenas prelúdio do tédio."


Autor: Alexandre Herculano (1908)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Chamei-lhe felicidade...


Num olhar descuidado vi...uma pluma pelo ar...ia embalada por uma brisa, numa leveza sublime...quase translúcida, no entanto promete ser breve a sua vida, se os elementos mais brisa não providenciarem...

Chamei-lhe felicidade...

A minha felicidade está agora dançando nos olhos dos meus amores! Meus filhos e sua mãe são como o oceano de estrelas no cosmos da minha existência ansiando pela madrugada em que brotam os botões das flores da alegria...cobrindo-me de beijos de amor!...

A felicidade é servida em pequenas doses!...cumpre-nos a missão de lhe prolongar a duração e o prazer...

No entanto, cautela...seria triste não lhe reconhecer o aroma...


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Today i will be a bomb...


Today i will be a bomb that when burst, i shit myself at the seams...

© Mário Rodrigues - 2010

Manhã (reedição)



Hoje, sem compreender exactamente porquê, acordei!

Acordei muito antes, do despertador que normalmente já costuma tocar depois de eu acordar. O dia ainda não tinha “nascido”. Olhei em redor… com a pouca luz que existia no quarto, observei a minha companheira de “guerra”, de um modo que me não lembro de alguma vez ter feito; meramente biológico. Realmente, a vida é uma grande maravilha. Dormia suave e silenciosamente, aquele complexo bioquímico, organizado numa verdadeira prova de mestria inimitável...
Levantei-me e fui até uma janela que abri… Um ar fresco e rico em oxigénio inundou-me os pulmões de assalto de um modo que quase me provocou dor…
O silêncio da manhã e o espectáculo de ver um dia nascer, é-me muito agradável. Mesmo muito. Utilizo-o muitas vezes na sequência de dias menos fáceis. Pergunto-me a mim mesmo, quanta sorte tenho em estar a assistir a um espectáculo, que apesar de se repetir diariamente, raramente reparo como é belo, e tão raramente usufruo da energia inigualável que ele me proporciona. Apesar da minha existência ser completamente indiferente a ele mesmo, (o nascer do dia).
Ao sair de casa vi uma minúscula flor violeta de quatro pétalas, que seria capaz de jurar que não existia numa pequena racha do muro de pedra. Aliás, nem tinha reparado bem que o muro era daquelas pedras; grandes... Aquele muro é um enorme habitat... Aquele muro… é o universo de muitos seres… Como será o “muro” que alberga o habitat de seres dos quais eu faço parte visto pelos olhos do transeunte que acorda cedo e repara num mero muro de pedra?

© Mário Rodrigues - 2009

terça-feira, 8 de junho de 2010

Mas quem escolhe a vaselina sou eu!...


Há algum tempo vivi uma situação que descrevi em "Eu não sou doutor!...", que me deixou "podre de raiva". Se naquela situação entendi a posição do interveniente, na que se passou hoje não entendo. Um dia destes, depois de a raiva me passar, talvez a descreva já devidamente lixiviada pelo tempo. Agora não. A vida tem feito de mim um homem de causas. A indignação, o inconformismo, a raiva e a vergonha, muitas vezes me têm empurrado para a defesa de posições que me custam etiquetas, cicatrizes e outras coisas...
Mais uma vez voltei a perceber que a maioria das pessoas tem tendência a "arruaçar" sem razão e a acobardar na frente do decisor quando a razão é exclusivamente delas. As pessoas "vendem-se" demasiadamente barato. Um indivíduo pseudo-bem vestido, que vomita uma série de incongruências, previamente seleccionadas para embaraçarem os outros, cala uma multidão que minutos antes na rua tinha jurado que o esfolava vivo; ao qual eu respondia que era preciso dialogar com a pessoa certa e do modo correcto...
Cinco, cinco minutos bastaram para que aquele energúmeno, que desde já declaro como sendo um óptimo cão de fila, tenha conseguido que trinta e duas pessoas ficassem a olhar para mim, com ar raivoso, por eu estar a confrontar, com convicção, o indivíduo com as suas incoerências assumindo uma posição de intransigência com relação às suas pretensões.

"...Então! Se o Sr. Dr. diz! Vamos arriscar!..."

"Escutem lá uma coisa meus amigos! O coiro que eu estou aqui a defender, nem sequer é o meu!..."

Entre amigos, eu costumo dizer:
"Se tiver de ser, desde que me digam, até me podem vir ao cu! Mas quem escolhe a vaselina sou eu!..."

Sim! Estou ligeiramente azedo...

© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 4 de junho de 2010

Um acto de ira...


Azuis. De um azul...ganga. Tinham uma sola branca de um plástico rígido...o plástico era tão rijo que comportava-se como se de ferraduras em calçada de paralelepípedos de granito se tratasse. Na minha primeira corrida, com tal coisa enfiada nos pés, para além de não conseguir parar antes da parede da curva da estrada do "Zé Alves" e claro está ter feito frente ao muro com as mãos, pernas, barriga e não sei que mais, as minhas intenções em relação a tal adereço ficaram claras! Um desaparecimento súbito vinha muito a calhar!...
Aquela porcaria tinha custado trezentos sacrificados escudos num feirante da feira de Outubro. Para além do "recadinho" de que teriam de durar até às férias do Natal... Chegado a casa constatei que a unha do dedo grande do pé direito, já tinha escrito o seu testamento e preparava-se para abandonar este "vale de lágrimas".

"MÁRIO JOÃO...", quando a minha mãe me chamava Mário João...lá vem bronca!... "Olha-me estes ténis acabados de comprar...já todos esfolados na biqueira... Tu andaste a jogar à bola?"

Apesar de não jogar à bola pelo simples facto de sempre ter detestado bola, naquele momento, assumir que tinha dado inúmeros pontapés em tudo o que era parede e pedras, claro está com o único e legitimo objectivo de...os destruir rapidamente, poderia ter consequências pouco gratificantes para as minhas nádegas e afins...sendo que, concordar com a sugestão pareceu-me menos punível...

"Foi só um bocadinho!..."

"Ainda por cima és mentiroso! Tu nunca jogas à bola!"

"Porra! Chiça! Que falta de sorte a minha!..."

Pois, pois...foi isso mesmo! Pimba, lá está o Mário João a "enxugar" as calcinhas na zona "sagrada"... Mas agora a coisa mudou completamente de figura!
Ai o tributo já foi pago? Então já vos digo!...

É certo que andei com dores nos dedos dos pés durante mais de um mês, mas aqueles miseráveis ténis, em duas semanas foram queimados na raivosa fogueira da inquisição "mariojoanina"...

© Mário Rodrigues - 2010

Se eu quisesse, enlouquecia...



Hoje...hoje sinto-me um pouco...
Enfim...hoje se eu quisesse...

"Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio... Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. Porque, sabe?, acorda-se às quatro da manhã num quarto vazio, acende-se um cigarro... Está a ver? A pequena luz do fósforo levanta de repente a massa das sombras, a camisa caída sobre a cadeira ganha um volume impossível, a nossa vida... compreende?... a nossa vida, a vida inteira, está ali como... como um acontecimento excessivo... Tem de se arrumar muito depressa. Há felizmente o estilo. Não calcula o que seja? Vejamos: o estilo é um modo subtil de transferir a confusão e violência da vida para o plano mental de uma unidade de significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe? Uma dessas abstracções que servem para tudo. O cigarro consome-se, não é?, a calma volta. Mas pode imaginar o que seja isto todas as noites, durante semanas ou meses ou anos?"

Autor: Herberto Helder

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Actos em síntese I


A existência de tudo no universo tem a sua proveniência. Devo considerar mesmo que a própria inexistência, também terá a sua proveniência.
Tudo provém de matérias ou ausência delas, de processos ou ausência deles, de discussões ou ausências das mesmas. Enfim, tudo é precedido de causas, sendo que os próprios efeitos, por sua vez, são causas outras de terceiros efeitos.
Posso considerar a possibilidade de a inexistência ter como proveniência uma existência que pela acção do tempo dá lugar a uma outra, sendo que entre ambas existe o nada, ou seja a inexistência. Este conceito, é bastante óbvio e simples de apreender, visto que se trata de coisa nenhuma.
Quando escrevo num papel branco uma letra, por exemplo a letra “A”, desenrola-se um processo em que da conjugação de varias existência: o papel, o lápis, a minha mão, a minha alfabetização, o controlo mecânico dos meus movimentos e muitas outras existências, que em si mesmas provêm de um universo interminável de muitas outras, vai atribuindo “existir” a algo inexistente. Em si, este facto já comprova a proveniência e o fim do nada.
Desmembrando a passagem do tempo em fracções ínfimas das mais pequenas fracções conhecidas do tempo, observo que em cada uma delas existe uma parte de um dos pontos, que em cadeia sucessiva, dão origem à linha que acaba por ficar com a forma, devido à acção das outras existências, da letra “A”. Ora, isto comprova que não existe o presente. Existe sim, o processo de passagem do passado para o futuro, sendo que entre ambos existe a inexistência que tem origem e fim em duas, e nunca a mesma, existências.
A interiorização deste processo permite-me colocar o meu discernimento em níveis de aceitação de realidades que, aparentemente, seriam de difícil compreensão e aceitação. A sensação de estádio primordial de consciência, o que desde já declaro como sendo por mim altamente procurado e desejado, incentiva-me a observar os actos, enquanto processos de acção, como sendo complexas simbioses de existências e inexistências.

© Mário Rodrigues - 2010

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