quinta-feira, 29 de abril de 2010

Uma coisa é uma coisa...


Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!

Reflicto sobre a possibilidade de uma coisa ser outra coisa, assim como outra ser uma coisa.
Numa primeira abordagem à ideia surge-me a impossibilidade te tal. A menos que a coisa seja desprovida de coerência, identidade e orgulho, a troca pela outra ou a fusão em uníssono, dando origem à outra coisa, é totalmente impossível! Tal faria surgir uma terceira que teria a agravante de não ser nem uma nem outra, coisa, claro!
Isso não está previsto nesta reflexão.
Não obstante reconheço a possibilidade de uma coisa, apesar de não ser outra, poder através de processos complexos e insuspeitos, tais como uma acção proveniente do exercício de um acto, se transformar em outra coisa!
No entanto, este primordial processo de criação carece de um desconhecimento inicial da outra coisa, a fim de prevenir a existência do dito terceiro.

Mas agora reparo que tal acção indicia pouca honestidade da minha parte...

Extraordinário!...Perante a necessidade de ultrapassar um obstáculo, não hesitei, coagi-me a manipular a realidade, ferindo de morte e desrespeitosamente aniquilando a outra coisa, transformando-a na coisa, com o propósito convicto de atingir o meu objectivo!...

Serei eu de confiança?... Hum!... Francamente!...

Se a honra, a honestidade, o respeito e os meus princípios tivessem peso suficiente no meu carácter, atrasaria o relógio o tempo suficiente para que de novo pudesse proceder à reflexão de um modo eticamente correcto e honesto!
Mas, não posso deixar de reparar que isso não basta. Apesar de ter regredido no tempo, não anulei o processo de reflexão anterior! Assim terei de lidar com uma reflexão contaminada pelas conclusões da que a antecedeu...
Isso muda completamente o desenrolar espontâneo e aleatório do processo, visto que, poderei não resistir, à tentação hipócrita, de tentar parecer muito correcto nos meus actos e reflexões devido à consciência da conotação que me adveio da anterior experiência!...
Pois bem! Serei desmascarado!...
Reparem, tal como a espontaneidade, a aleatoriedade não existe. Rapidamente todos constatarão que uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa!


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Tela branca, alva, calva...


Tela...
Tela branca, alva, calva...
Apesar de habitualmente não pintar, tive urgência em fazê-lo! Numa corrida furtiva, fui a uma loja e comprei uma tela branca, três pastéis pretos, duas bisnagas de acrílico vermelho...umas espátulas e carvão...

Em casa, isto é, num local de improviso montei o cavalete e agarrei a tela. Olhei demoradamente para o vazio da tela até ela ficar completamente branca...mas não consegui...ao fechar os olhos consegui vê-la finalmente vazia e branca!

Demorei-me um pouco, pelo receio de que a alvura de novo fugisse. Já está. Agora é que vou conseguir desenhar...

A fraqueza!...

Os momentos que tenho privado com ela, fazem-me sentir-lhe as formas. Formas esguias, ovais de coragem esbatida e medo berrante... Formas sem margens, de definições muito marcadas que quase rasgariam a tela, vermelhos incolores de vergonha...ou antes timidez... Não, são mesmo é de medo!

Tiro a tela do cavalete e ponho-a em cima de uma mesa. Vai-me dar muito mais jeito...
Com o pastel e o carvão traço marcas de vida, com rombos, curvas e vértices redondos como espinhos de roseira. Depois com a mão esfrego até atingir grandes zonas de sombra. Biombos de cobardia!...

Agora com o acrílico vermelho, vou traçar-lhe grandes áreas de ousadia!... Isso mesmo, ousadia e uns bouquets de coragem!...

Coloco uma boa porção da pasta na tela...mas aqui não me dá jeito!

Ponho-a no chão. Com uma espátula em cada mão atiro-me na disposição de a mutilar avidamente. Os biombos e os cenários de sombras haveriam de sofrer a brutalidade da coragem e da força. Calculo-lhes as formas das mandíbulas e em movimentos precisos e calculados começo a dar-lhes formas...

A luta é renhida, as sombras estendem-se com pouco esforço abafando o escarlate. As espátulas ficam moles como tiras de papel pardo!...aquilo não me agrada nada, sinto-me muito pouco potente, não obstante da minha valentia, luto contra aqueles riscos de carvão que a minha mão já tinha esbatido, mas que me exibem os caninos exuberantes!...

Num acto quase descontrolado salto com os dois pés juntos para cima da tela...
Então afundo-me... Enquanto me afundo olho para a superfície e vejo, em imagens pouco focadas, os pasteis e o carvão, nas suas enormes casacas de golas peludas rindo!... Rindo em gargalhadas de desdém que mostram os seus pútridos dentes negros em bocas de dominação!...

© Mário Rodrigues - 2010

domingo, 25 de abril de 2010

Abril ainda está por fazer…


Este, foi o primeiro post deste blog.
Hoje, republico-o na companhia da lágrima, que novamente me visita...

"segunda-feira, 27 de Abril de 2009

Abril ainda está por fazer…
Abril…. Vagueando pelo meio dos meus documentários…..,dei com os olhos no “Capitães de Abril”, sei bem que não é um documentário, mas na minha prateleira está nesse lugar, dos documentários. Tinha 4 anos no dia 25 de Abril de 1974. Não resisti a dar uma olhadela; aí a 225ª vez e mais uma vez e como da 1ª vez que o vi, chorei novamente… e principalmente chorei por continuar a sentir vontade de chorar quando o vejo. Abril, ainda está por fazer. Abril foi e é todos os dias enxovalhado e vergonhosamente tomado por bocas e mãos que nunca o entenderam mas sempre o usaram. Abril ainda está por fazer… Abril ainda está por fazer… Abril ainda está por fazer…

© Mário Rodrigues - 2009"

sábado, 24 de abril de 2010

Por favor, fiquem com um...São uma ternura!...

Fofos e indefesos. Nasceram com os corpos despidos de qualquer pêlo.
São um amor e uma ternura. Se pudesse, não faría isto.
Gostava imenso de ficar com todos mas a minha varanda tornou-se pequena.

Oferece-se ninhada de hipopótamos!


© Mário Rodrigues - 2010

sexta-feira, 23 de abril de 2010

De noite, todos os gatos são parvos!...


Já tinha por lá passados algumas vezes. Lembro-me que da primeira, pareceu-me uma vala normal mas com uns "aparelhos" para alguns exercícios da praxe. Depois a sua fama começou a ouvir-se por lá...

Algumas vezes depois, imaginava-lhe as manhas nas manhãs, bem como as eventuais possibilidades de não "arranhar" lá muito...

Numa noite, sem que nada o fizesse esperar, fomos todos em "passo de corrida" embrenhados nas trevas até que algo me pareceu não ser exactamente desconhecido!
Terá sido uma das piores horas da minha vida... Levei sem saber de onde vinha, chorei e os tímpanos estilhaçaram. Quando acabei...não sei! Sentia-me muito exausto!...

Hoje perante o que já vivi, recordo-a como uma mera prova física.
Davam-lhe o nome de "Vala escura".


© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 22 de abril de 2010

"Eu não sou doutor!..."


Existem "experiências" que tal como as "realidades", nos "arrojam" a alma por veredas cortantes que nos lavram a existência.

Cheirava mal! Tinha um odor que disparou as minhas ligações neurais como no primeiro dia que tive contacto com a drenagem urgente de um quisto dermóide...
Mas não! Não tinha qualquer coisa do género. Duas fracturas e laceração de tecidos...

"Onze ou doze..." pensei eu, enquanto imaginava a abordagem de preparação do campo para a cirurgia...

"Mas porque razão cheiras tão mal?!..."

Não consigo, apesar de algum esforço, imaginar o meu filho, que terá eventualmente a mesma idade, naquela situação...
Sinto-me responsável por aquela situação que desconheço completamente... Não sei de que modo, mas sinto-me...
Bem! Já conheço demais...

"O que se passou?..."
"Foi um doutor, no parque, que depois de "coiso" me deu um pontapé..."
"Um pontapé?..."
"...atirou-me a merda do carro para cima..., ...e fodeu-me o guito..."
"...dass! Como é que te metes nessas merdas?..."
"Oh! Doutor!..."
"Eu não sou doutor! ouviste?..."
"Yap, desculpe doutor!..."
"Eu não sou doutor..."
" Yap, enganei-me."
"Sim e então?..."
"Deu-me uma trancada com o carro e não me deu o guito porque diz que eu estava cheio de medo e não abria o cú..., diz que depois falava com o "Lâmpadas"!..."
"Lâmpadas?..., dass, ca puta de nome?!..."
"Depois da cirurgia temos de ir ter com o agente para ver ali umas fotografias de uns...senhores..."
"Oh! Doutor!... Népia. Eu não quero problemas..., só quero o guito para dar ao "Boss" para ele me orientar o coiso...!..."

Saltam-me gotas de suor da cabeça, quando me assalta a imagem de ver o meu filho ali naquela cena... Imagino-me a...

"Escuta puto! Vais ver as fotografias e vais te recordar de uns senhores doutores que vais ver...certo?"
"Népia doutor!..."
"Eu não sou doutor..."


© Mário Rodrigues - 2010

quarta-feira, 21 de abril de 2010

Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...


"És bom para ir aos figos!... Quando for aos figos levo-te comigo!..."

Esta expressão leva-me a pensar de imediato, que estou a falar de alguém muito alto. Aparentemente, posso ser empurrado de supetão para verdades absolutas em redor de apanhar figos! Isto é muito precipitado da minha parte. Avançar sem uma observação e reflexão do desenrolar do acto, leva-me a tomar conclusões precipitadas!

Teremos de observar toda uma série de factores para que mais fidedigna seja a conclusão. Em primeiro lugar temos de ter a certeza de que se trata de uma figueira. Depois temos de...esperem...o universo de variáveis é muito pouco finito...é quase infinito! Teríamos de reflectir sobre a espécie da figueira, a altura da figueira, a disposição da figueira, o tipo de terreno, etc, etc...

Eu, na qualidade de...
Enfim, vou já decidir uma serie de coisas, mas só para facilitar. Penso que já tomastes consciência, de que se assim não fosse, o resultado poderia ser demasiadamente apurado, sendo que isso tinha como consequência um refinamento na caracterização que só deixaria espaço para uma situação em particular, o que não servia o intuito de abordar a generalidade da situação.

Assim, trata-se de uma figueira de S. João, daquelas que dá uns figos enormes castanhos. O outro indivíduo era alto, mais alto que eu, mas não o suficiente para apanhar os figos com os pés no chão, assim sem mais nada. Parece-me imperioso que a época do ano em que se desenrola a situação seja a época em que a figueira tem figos. Aliás, isso não basta. De toda a época em que a figueira tem figos, só menos de um quinto do tempo é que corresponde ao período em que os mesmos estão maduros, sendo que no restante espaço de tempo, seria pouco...era um bocado parvo, apanhar figos verdes só por causa de uma experiência que ainda por cima, nem sequer se está a desenrolar efectivamente, porque está a ser imaginada!
Ora se se está a imaginar uma coisa, convêm que se imagine uma coisa com algum préstimo!...
Também não sei para quê esse espartilho da lógica?!...
Podíamos partir do pressuposto de que aquela figueira ainda não tinha figos! Podia ter havido uma grande queda de granizo na altura da floração e isso teria destruído todas a possibilidade de nascerem figos!...
Mas penso que nunca vi flores nas figueiras!...
A menos que aquela figueira, não desse figos mas sim...nozes por exemplo que não se estragariam com o granizo!... E nascem de flores... Mas e se o granizo estragasse as flores nas nozes?
Bem, mas isso resolve-se já porque as flores das nozes tinham nascido na primavera e o granizo tinha caído antes. Garantindo assim que as flores intactas persistiriam. Também mando alguma coisa!...
Não! Não pode ser! Porque então não era uma figueira! Ou então seria uma árvore com folhas de figueira e frutos de nogueira, e isso não era muito vulgar!... Só faltava o tronco ser de freixo, para que a casca rugosa permitisse que os esquilos subissem lá acima para comer as nozes... Mas nunca ouvi dizer que, "...és tão alto que te levo às nozes!...". Para além disso se os esquilos as comessem, não faria qualquer sentido ir apanha-las. Muito menos com um amigo alto, porque teríamos de dividir as nozes que seriam muito poucas...e de certeza que ele não ia querer dividir ao meio a colheita visto que tinha sido ele a apanha-las...logo não seria meu amigo!
Mas se ele nem sequer sabia de nada, como é que ia querer das minhas nozes!
Claro que sabia porque eu lhe tinha dito! Ele ia tão calado na vida dele!...
Foi um pouco precipitado da minha parte, ter-lhe dito par ir comigo aos figos, se eu ainda nada sabia acerca da figueira em causa! E da qualidade e quantidade dos seus frutos! E da disposição do terreno, etc, etc...


© Mário Rodrigues - 2010

terça-feira, 20 de abril de 2010

Paro cristalizado de pavor!


Uma epopeia!
Oh! Que epopeia!

A manhã tinha acordado enevoada...

"Março marçagão, manhãs de inverno e tardes de verão..."

Pois bem, a manhã estava enevoada. Gigantescas meias esferas abobadadas de água abundavam por aqueles lados. Campânulas hirtas expostas às forças colossais da brisa matinal, como cápsulas marcianas, espalhavam-se por montes e vales...

Orvalho!...

A área era vastíssima! A vista alcançava...a mais de quinze centímetros de distância apesar do ofuscado da nébula. Tinha acordado de mais uma interminável campanha das trevas. Renhidas lutas onde houve lugar a uma enorme quantidade de baixas nas nossas guerreiras...
Aquelas térmitas eram odiáveis!
Mas um dia...venceremos definitivamente! Esta guerra fará com que nós, dada a nossa supremacia de "Argentus", um dia as derrotemos em todo o seu gigantismo...

Apesar disso, a manhã estava calma. Por entre a nébula, um raio de sol destaca o amarelo intenso de uma flor. Junto ao seu pé, tomo consciência da sua colossal altura!...
Qual será a sabedoria acumulada de tal ser? Que envergadura!...
Extraordinário!...Todo o universo estaria à mercê de meus olhos se o cume das sua pétalas eu alcançasse!...

Mas...porque não subo? É certo que o enorme tronco não oferecia muita aderência, no entanto, com esforço consigo ir subindo. Alcanço um pouco mais. E mais. E mais...

Paro cristalizado de pavor! O barulho ensurdecedor e as vibrações tremem a terra e ficam cada vez mais próximas. Sinto toda a fúria do vento tentando arrancar-me do escorregadio tronco. Uma enorme abelha vem cobrar o seu tributo, nos estames polinizados. Agacho-me e esforço-me para não ser arrancado.

O sol começa a despontar e os seus raios a trespassarem-me o corpo. A escalada é penosa. Os meus olhos já alcançam aquele amarelo quase ofuscante. Mergulho num derradeiro esforço que me leva ao cume das amarelas pétalas...

Ah!...

Tenho muita dificuldade em...apreender o que os meus olhos vêem...

O Universo... é muito maior do que eu algum dia poderia pensar...


© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 12 de abril de 2010

Os Suricates em viajem



Cliquem em "Vamos ver..."

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Então! Não sejais gananciosos...


Recordo-me dele! Recordo-me como se nunca, mais tivesse visto.
Tinha um aspecto de algum bom trato não obstante do seu gigantismo. Há muito acomodado a uma mesa muito pouco farta, ocupava um espaço muito grande...digamos que apoderara-se de espaço de outrem.
Servia-se de tudo o que estava na mesa e não só...
Tinha muitos braços tentaculados. Cada um desses braços tinha apêndices e prolongamentos. Alguns prolongamentos não viviam permanentemente junto dele, mas vinham com frequência juntar-se-lhe para que assim se tornasse mais injustamente eficaz na sua orgia de destruição de recursos.
Havia braços que tinham terminações e apêndices bizarros; chicotes finíssimos que cortavam dorsos vergados, lâminas de fio diamantado com que infligia cortes profundos e eternamente hemorrágicos, pontas de dedos indicadores que desnudavam a alma a quem apontavam, falos que penetravam incessantemente os violados que bradavam de dor bem como clitóricas e nojentas vaginas de um bando de vermes que o bajulavam.
Era temido e nunca respeitado.
A tristeza de esta não ser uma recordação como as outras...só uma recordação, deixa-me convicto de que o pretérito o não arrancou das nossas historias mas antes, qual intemporalidade, permanece ali...ali...ali!
O seu urro de soprano melado, qual castrati pseudo-angelical do século XIX, com intuito de se disfarçar, deixa ver numa transparência de tule negro a sua completa acefalia que contrasta com a também completa ambição de poder.
Os cantares, como se de sereias dos mares do Sul se tratasse, embriagam apêndices que até então o repudiam e negam. Pouco tempo depois, ávidos e de gosmas a escorrer pelos cantos das bocas dão vivas à degradante causa. Ele então, com um focinho ternurento de Hades arrependido diz no seu tom de Dom Corleone:

"Então! Não sejais gananciosos... Somos todos irmãos!..."

© Mário Rodrigues - 2010

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Quebrando correntes...


A discussão era enorme, quase ninguém se entendia, ou ninguém mesmo...as circunstâncias da morte daquele triângulo...teriam de ser muito bem explicadas!
"Já disse inúmeras vezes que nada tive a ver com a morte desse triângulo!"
"Então porque te disfarçaste?"
"Usar gel é um disfarce?"
"Claro que é! Assim todos te julgam um ponto final! Ocultando a tua verdadeira identidade de asterisco...!

Tratava-se de um triângulo já idoso, chutado de folha em folha. Os geómetras ignoravam-no compulsivamente, olhavam-no com asco e desprezo. Em tempos idos, vítima de um compasso comparador de corte, sofreu um rasgo que o privou definitivamente da sua beleza de isósceles. Transformou-o numa aberração que nada tinha de escaleno, dando-lhe como lado uma cicatriz em forma de arco que lhe alterou o ângulo. Ali, moribundo naquele estirador, esvaia-se em tinta-da-china. As feições desapareciam-lhe numa alvura que o esgotava e levava à transparência.

"Quadrado sou eu e afirmo aqui, arriscando-me a levar com um traço azul por cima, que é assim, é assim que os que lutam a vida inteira, trabalhando honradamente para esses senhores octógonos e dodecágonos, que se julgam donos do mundo e que nos exploram até ao último ponto das nossas linhas! É assim que depois terminamos..."

"Já cá faltava essa conversa! Claro!
Eu sou filho de uma base de uma pirâmide quadrangular e de um honrado triângulo recto. Tenho origens muito humildes e se hoje sou octógono lutei muito!
Já fui um quadrado que cresci a apanhar as borras das borrachas que espartanamente aniquilam os defeituosos pelas mãos do criador, essa omnipresença que nos castra, com a ajuda de ferramentas de martírio e tortura, essas senhoras réguas e esquadros que nos querem fazer todos iguais arrancando-nos o nosso direito de sermos diferentes, até conseguir com muito esforço e trabalho, unir pontos perdidos e endireitar restos de arcos mal apagados, para assim conseguir ir juntando uma e outra recta para ser pentágono e hexágino até ao que sou hoje!
E eu? Não trabalhei honradamente?"

"Quem pensas tu que és? Tenho tudo o que tu tens! Temos os mesmos direitos! Ou será que só porque não tenho ângulos nem rectas sou inferior? O meu pai era base de um cone! Pois era! E depois? Sou uma circunferência e tenho muito orgulho nisso!"

"Pois tens muito orgulho, mas já mais chegarás a esfera! Teremos que almejar algo mais além..."

"Quem me dera...Quem me dera, não sendo nada, ser uma representação gráfica de um pensamento de uma criança, cuja mão leve desloca um lápis pela folha branca, dando-me formas curvas e elípticas...como o esvoaçar de uma borboleta..."

"Cautelas! Cautelas que se aproximam os volumes. Agora é que se vão partir os bicos..."


Uma mão arrebanha a folha. Da discussão não nasceu muito. Apesar do covil do inferno estar logo ali, com as suas lâminas triturantes, o criador atira-a para o cesto dos papéis...
Uma criança que por ali andava, dela logo fez um aviãozinho que atirou pela janela, qual porta celestial...
Uma gota atinge o aviãozinho. Cai em cima do último ponto de tinta do nosso triângulo isósceles...

Oh! Que trinados de trompetes celestiais! Assim, sob a forma de borrão, ele renasce com um novo esplendor e completamente livre nas suas formas... Quebrando correntes...


© Mário Rodrigues - 2010

sábado, 3 de abril de 2010

Era uma cidade. Penso que o era...


Era uma cidade. Penso que o era. Não vi pessoas nas ruas, apenas um gato castanho e uma bola de couro que corriam à frente de duas crianças. Dois garotos vestidos com uma casaca castanha, uns calções e um boné...e calçavam umas botas até ao tornozelo. A cidade era esférica. Os prédios periféricos eram curvos, as ruas muito estreitas, tão estreitas que um dedo mindinho cortaria a passagem a um incauto transeunte. Era curiosa a maneira como escorriam as águas nas fontes; caiam das torneiras para o céu! Alias, agora que recordo, na porta de uma loja pendia na direcção dos astros uma placa que dizia "Joseph Smith & Nephew".
Os movimentos, naquela cidade, eram furtivos. As casas eram muito estreitas, quase do tamanho de caixas de fósforos. Erguiam-se muito alto e tinham telhados pontiagudos. No vértice de um cone terminava uma torre, que tinha uma altura impressionante, parecia um lápis, existia um cata-vento, um galo que girava sem parar...parecia...claro se a cidade é esférica, os ventos são circulares! No entanto, ele tinha a seus pés os quatro pontos cardeais! Onde estaria o Norte? Nor-Noroeste? Se ele girava sem cessar...
Escuta-se um trinado de máquinas de escrever a martelarem com os seus pequenos punções as folhas alvas de papel.
As coisas estão todas penduradas para cima! Reparo mais uma vez ao ver umas calças estendidas numa corda minúscula... O que terá acontecido à gravidade neste local? Terá um criador sido vitima de conspiração e na sequência dela mesma ter condenado injustamente esta cidade a uma gravidade inversa? Terá o cosmos invertido o sentido das forças físicas em mais um dos seus caprichos? O cosmos tem caprichos?

Esperem, reparo que toda a cidade está na realidade numa posição invertida! Claro, isso explica tudo! Assim as coisas fazem sentido.

Sinto-me emocionado com a grandeza e complexidade desta cidade. Não consigo, apesar do esforço, conter as lágrimas...elas brotam dos meus olhos sem respeito pelo meu constrangimento...elas brotam e escorem-me pela testa até pingarem dos fios do meu cabelo...

© Mário Rodrigues - 2010

quinta-feira, 1 de abril de 2010

Eram outros tempos... III


Escrevia Joaquim Teófilo Fernandes Braga, algures no ano 1865 na sua obra "As Teocracias Literárias - Relance sobre o Estado Actual da Literatura Portuguesa".

"Estamos numa terra em que a verdade para ser ouvida precisa trazer a forma de escândalo. A não vir deste modo é uma coisa ininteligível, obscura.
Tanto melhor para quem aspira a ser entendido somente por aqueles que se pagam de sua obscuridade pela firmeza da consciência, e integridade de carácter."

Ainda bem que isto foi em 1865...

© Mário Rodrigues - 2010

Mensagens populares