quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Dias difíceis.

De vez em quando ela aparecia. Tinha um aspecto enganador. Azul quase bebé, tricotada com dedicação pelas mãos maternais, aspecto...ternurento e um bocado "betinho"... Costumava fazer "pandam" com umas calças beije que tinham uns quadrados mais escuros.
Como se já não bastasse o raio das calças de lã, tipo "jardineiras" com os seus suspensórios da treta e sem braguilha, o que me fazia a vida num inferno, principalmente na hora de fazer o meu chichi, tendo em conta que estava no limite da possibilidade de contenção da minha bexiga, porque estava muito ocupado em mais uma das minhas invenções, ainda tinha aquela maravilha do massacre cutâneo que era aquela camisola.
Tinha mangas compridas e gola semi-alta mas o pior de tudo, é que picava como se fosse um ouriço! O diabo da camisola, ainda que vestida por cima de qualquer coisa, tinha picos que tudo atravessavam e se iam ferrar em todo o meu tronco e braços, combinando assim também com as calças que me punham as pernas em brasa e quase com urticária.
"Oh, Mário João, mas ficas tão bem!...", dizia-me a minha mãe, "Oh, mãe mas isto pica muito!...", dizia-lhe eu...
Enfim, claro está, quem é que levava a sua avante, e eu passava um dia inteiro com a impressão de andar vestido com um enxame de abelhas. Ainda hoje quando me lembro disso sinto comichão...

© Mário Rodrigues - 2009

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Tango...

Urgente!...

Corram todos venham ver!
Vejam como eles rodopiam, como eles formam um turbilhão de movimento...
Vejam os seus pés...
Vejam os seus corpos...
Vejam as suas cores...
Movem-se em impulsos. Vibram. Parecem raios de luz negra...
Rodopiam e regressam ao mesmo ritmo.
É fascinante...
Num arrojo de suavidade, deslizam graciosamente e chicoteiam as veredas com os tacões e com a alma.
Voltam e bamboleiam-se, desengonçados em movimentos compassados e frenéticos... As árvores arqueiam-se numa vénia de espanto.
As crianças não resistem, rasgam amarras, libertam-se de mãos opressoras e irrompem dos seus pátios de mãos dadas, rodopiam em correrias numa roda em volta...
Urgente! Urgente! Corram todos, venham ver gente feliz...

© Mário Rodrigues - 2009

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Desta janela vejo o mundo...

Janela...

Desta, observo uma dama com um vestido até aos pés. Tem uma daquelas armações por debaixo do vestido, que lhe faz parecer ter um rabo de vespa! Emproada, fixa o olhar no horizonte vazio. Não consegue disfarçar o olhar que segue o galã do "Capitan" descapotável...

Não, afinal não! Vejo antes uma criança que corre com uma redinha na mão, atrás de uma bela borboleta. Não sei bem se a quer mesmo apanhar. Talvez queira mesmo só vê-la de mais perto. A Alice disse-lhe que as suas asas eram veludo autêntico...

Bem me parecia! O que ali vai mesmo é um casal de namorados que caminham de mãos dadas e trocando olhares e sorrisos. À frente deles, segue um retratista, com a sua caixa negra, que há quem diga que rouba o espírito das pessoas. Ele segue, andando para trás, numa tentativa de fotografar o casal. Sim, aqui em Paris os artistas fazem de tudo pela sua arte...

Ali, um homem alto, com um casaco até aos pés com uma gola muito peluda, saiu da pastelaria. Tem um ar sinistro. Olha para os que por ali passam, como se fosse detentor de uma altura de pelo menos cinco metros. "Homem do Ministério", é esse o nome que os ardinas lhe atribuem...

Ping, ping, ping... Goteja lentamente da ponta daquela folha, gotas de pranto de aflição... Uma rabanada de vento, abana profundamente toda a cena. Os olhares descuidados dos transeuntes inferem golpes rudes naquelas gotas de ânsia. Ninguém lhes dá valor nem esperança. Não lhes conhecem o sentir e a dor. Ping, ping, ping... Um pequeno pássaro aproxima-se e observa. Não estranha. Acaricia com o bico a folha e, num rompante, abriu asas e voou...

Desta janela, vejo tudo! Reparem como segue sorrateiro, o rosto vai tapado. Quem será a próxima vitima? Nobre senhor, de elegante trato e aspecto, fica por chão. Tinha-lhe sido ofertado por quem muito o admirava, ou simplesmente bajulava. "Longines", inscrito no mostrador de madrepérola, por detrás de um vidro safira com pequenos traços de ouro encrostados... "Assim conseguirei pagar ao Dr. Gaspar as injecções para arrancar o gaiato das unhas da pneumónica". Com duas moedas escondidas na mão, cumprimenta o polícia que vigia a distribuição do açúcar e da farinha racionada, "...já está a contar com isso! Ele e a minha mulher, com o reforço para o conduto dos gaiatos..."

Desta janela vejo o mundo...

© Mário Rodrigues - 2009

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Hipócritas...

Abrem os jornais da manhã:
"Chacina em base norte-americana no Texas... Não se sabe o que terá acontecido..."

Hipócritas...

Um homem, militarmente, major; vocacionalmente, psiquiatra; familiarmente, marido e pai; biologicamente, "antropóide sapiens mais"; socialmente, local de despejo de dramas e local de colheita de esperanças e felicidades...

Trinta e nove anos, mata doze colegas e fere trinta e um, só porque os não conseguiu matar. Foi abatido. Não mortalmente. Ponto comum a ele e a todos os colegas que ele atingiu: de partida, novamente, para o Iraque...

Este não é dos que se mataria no final da chacina!

Uma base militar, onde permanecem em constante exercício e alerta 50.000 homens, armados até aos dentes deles e dos avós deles, envoltos em drama, honra, vida, droga, manipulação, loucura; é uma verdadeira bomba atómica.

A exposição à guerra e aos seus efeitos, é derradeira na vida de um homem.

Há muitos modos de morrer, e alguns daqueles homens, que já era a enésima vez que iam para o campo de guerra, e cujos olhos e cérebros lampejam horrores impensáveis, que ficaram gratos ao major médico, que num acto de perfeita eutanásia, os brindou com o fim do sofrimento, tal qual cadáveres sem vida própria digna.

Matar-se no fim? Não! Um homem assim, não se mata no fim... Um homem assim, tem muito claro na sua mente que tem de libertar os seus companheiros. Um homem assim, já escutou, lidou e teve de compreender, as maiores barbaridades que chegam a ser difíceis de imaginar, e quer cá ficar para gritar porque razão o fez.

Quanto? Não! Muito mais! Muitos anos, e centenas de centenas de histórias e de sofrimentos e de esventramentos da alma e arrancamentos de corações, sendo obrigado a permanecer vivo e a corresponder com o que se espera dele.

O contacto permanente com o sofrimento alheio, é corrosivamente destruidor. A guerra tem consequências incalculáveis.

Este homem, socialmente pode ser um criminoso, mas este homem é um fruto da guerra com o discernimento esmagado pelo sofrimento atroz...

© Mário Rodrigues - 2009

Toco de oliveira velha...

Era cedo, bastante cedo. Geralmente acordo muito cedo, o que, quando por lá estou, me possibilita um prazer que tenho dificuldade em descrever.
Sente-se uma frescura de fim de madrugada, o sol, ainda se passeia pelo leste, e dele vislumbro uma nuvem difusa de claridade que traz com ela a promessa dos primeiros raios...
O silêncio do vale é guarnecido com o cantar do ribeiro. Os insectos, parecem ainda não existir. Os pássaros, esses, poucos dão o ar da sua graça!
Os primeiros raios, ao surgirem no cume, trazem despertares aos animais. Sentem-se acordar.
Havia já meia hora, que estava sentado num "toco" de uma oliveira velha, que cortei há algum tempo. É um local privilegiado. Naquele local, sentado com as pernas penduradas, abandono-me. Quando me lá sento, é para lá ficar... Aquele local não pode ser profanado. O vale, escancara-se numa escarpa quase abrupta de uns cem metros a meus pés. De oriente, chega o sol, preguiçoso!
Os primeiros raios, ao surgirem no cume, trazem consigo o início do espectáculo. Os actores já lá estavam; à espera!
Num perfeito acto de natalidade, a montanha deixa que nasça das suas entranhas um vapor matinal que com a chegada dos primeiros raios de sol, e com as correntes térmicas ascendentes por eles provocadas, caminham pela encosta acima como se fossem enormes lençóis alvos... Chegados ao cume, encontram os outros, os de sul e os de oeste, e juntos ascendem nos céus, na qualidade de enormes e lindas nuvens brancas.
Por estas horas, já os melros se divertem nos seus saltos e assobios extraordinários. O pica-pau, lindo no seu negro e escarlate, esconde-se. Esconde-se sempre. Levei algum tempo até ser contemplado com a sua imagem. Soberba! Os esquilos, dormem.

Eu, sinto-me como de fosse uma pedra daquela montanha. Assim como estou, encaixo na perfeição naquele quadro.

A vida do ser humano, pode ser muito simplesmente bela e justificada...

© Mário Rodrigues - 2009

Hoje é sexta-feira.

Sexta. Hoje é sexta-feira. Sinto segredos das pernas, dos braços, dos pés e ouço reclamações do dorso. Esta semana foi algo trabalhosa. Sinto um leve sabor a cansaço.
Esta semana, foi daquelas em que o trabalho rendeu alguma coisa de material, mas este sabor que tenho na "boca", não é a dinheiro!
Esta semana tive a oportunidade, por várias vezes, de ser útil! Tive o prazer de ver pessoas menos apreensivas, na sequência da minha aparição. Tive a felicidade de constatar que, depois do meu trabalho, e quando as já deixava, olhei para trás e vi-as mais felizes e aliviadas.
Envolvidas nos seus universos, acabados de ser alterados, mas onde já havia um amanhã diferente.
Não! Não deram pela minha saída! Não gosto que dêem por ela. Para além de poder provocar num impulso, um acto de agradecimento, o que me deixa sempre encabulado, leva a que mais uma vez me olhem na cara, e que com isso, a possibilidade de me virem a reconhecer mais tarde aumente. A minha missão é trazer e não levar...
Hoje, sinto que nesta semana, o mundo avançou um pouquinho no sentido da nossa natureza, da nossa razão para viver. Apetece-me descansar um pouco...

© Mário Rodrigues - 2009

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